Crítica sobre o filme "Regra do jogo, A":

Eron Duarte Fagundes
Regra do jogo, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 26/03/2004

Na seqüência inicial de A regra do jogo (La régle du jeu; 1939), de Jean Renoir, uma radialista narra a chegada dum famoso aviador a Paris. Irritado, ele surpreende a todos (que esperavam palavras sobre sua façanha aviatória) quando se diz decepcionado, falando da ausência da mulher que ama (uma burguesa casada) à recepção no aeroporto. Um seu amigo queixa-se da infantilidade do aviador: é um homem capaz de atravessar o Oceano Atlântico, mas perde-se em suas miudezas particulares.

Cuido que a cena de abertura de certa maneira ilumina a ideologia do filme. Como poucos, Renoir nos mostra as relações entre o privado e o público na vida dos indivíduos. É o cinismo e a hipocrisia que permitem que o privado não enxovalhe o público, e a vida humana siga adiante com razoável saúde; a excessiva sinceridade do aviador, um homem público, no início do filme, é um episódio raro, que perturba um pouco a regra do jogo.

Em A regra do jogo a mestria da direção de Jean Renoir atinge seu ápice. O roteiro múltiplo, capaz de encenar em ritmo vertiginoso uma série de tramas amorosas paralelas, tem na decupagem de Renoir um equilíbrio cinematográfico extraordinário. A câmara de Renoir adota um comportamento livre, movimenta-se com especial leveza para ligar os pedaços narrativos; a montagem flui em grande rigor e plasticidade.

Diretor preciso de seus atores, Renoir interpreta a personagem de Octave, um parasita social que transita entre as classes dos patrões e dos empregados e que serve de fio condutor da consciência do filme. Como intérprete, Renoir é tão desenvolto e inventivo quanto como diretor. A visão que o cineasta Renoir tem dos descaminhos da sociedade francesa de entre-duas-guerras topa na criatura de Octave (Renoir-intérprete) seu símbolo mais divertido e perverso.

Extraindo elementos da comédia popular francesa (enredos sentimentais misturados a pancadarias entre homens rivais que disputam mulheres), Renoir conduz A regra do jogo a uma análise distanciada e impiedosa da convivência entre as classes sociais. Os elementos populares nunca renderam ao filme sucesso de público, porque na verdade eles estão subvertidos no jogo estilístico. É a mão de Renoir que transforma as tolices ditas pelas personagens numa visão cinematográfica crítica.

O jogo de equívocos (Octave escapa de morrer e em seu lugar morre seu amigo aviador –o que remete a uma obra-prima de Renoir realizada em 1934, Toni, em que uma personagem ingênua igualmente morre por uma mulher no lugar duma personagem cínica) e o humor sutil de Jean Renoir influíram decisivamente na linguagem do cinema contemporâneo. Mesmo obras tão diversas quanto Sorrisos de uma noite de verão (1955), do sueco Ingmar Bergman, e Tudo bem (1977), do brasileiro Arnaldo Jabor, pagam tributo ao filme de Renoir.

O aviador, que no início da fita é festejado mas está insatisfeito, termina o filme assassinado. Em sua morte Renoir centraliza as ironias sociais. Na face hipocritamente compungida de Octave a câmara de Renoir alumia o lado escuro da sociedade.