Crítica sobre o filme "Queda da Casa Usher, A":

Eron Duarte Fagundes
Queda da Casa Usher, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 06/07/2004

O franco-polonês Jean Epstein (francês por opção, polonês de nascimento) é um destes nomes míticos do cinema a que o espectador brasileiro desta beira do século XXI raramente tem acesso, mesmo em salas especiais. Já num artigo de 1954, o crítico brasileiro de cinema Francisco Luiz de Almeida Salles, que o ensaísta e historiador Paulo Emilio Sales Gomes considerava como nosso “único escritor (dos meios cinematográficos brasileiros) na plena acepção da palavra”, lamentava a incompreensão existente em relação à obra de Epstein, teórico do cinema e cineasta.

Epstein deve sua fama nos estudos de cinema a um único filme, A queda da casa Usher (1928), extraído de um dos mais célebres contos do norte-americano Edgar Allan Poe (o conto é de 1839 e teve entre nós uma primorosa tradução de Oscar Mendes publicada pela José Aguiar Editora em 1975). Em Porto Alegre, o Projeto Raros (filmes nunca vistos ou raramente vistos no país) da Sala Paulo Fontoura Gastal exibiu esta preciosidade o ano passado. A quem pode interessar um velho filme francês dos anos 20, ainda quando se trate de algo historicamente conceituado, se a oferta das facilidades visuais induz o espectador de sempre a acreditar que o cinema é, como a informática, só tecnologia, em que a posterior enterra a anterior e estamos conversados? Mesmo assim, na sessão a que aludo, havia um expressivo público: uma fauna meio esquisita, mas o filme de Epstein (como o conto de Poe) igualmente contém sua dose de esquisitice.

A cópia exibida era uma versão em dvd (projetada num telão) em que os letreiros em francês eram traduzidos para o inglês e as imagens de um cinema mudo contavam com um acompanhamento musical incrustado na montagem. A essência do cinema silencioso foi assim adulterada para não chocar tanto o conformismo, a preguiça e o hábito do observador moderno. Mas Epstein é um mestre da imagem: recria os cenários mórbidos da literatura de Poe com uma geometria cinematográfica em que a beleza plástica da angulação, alguns sutis movimentos de câmara que parecem avançar para dentro do cenário (os cacarecos de interiores ou as folhagens do lado de fora da casa) e a disposição de objetos e atores na encenação promovem uma orquestra visual ainda hoje de muita força.

Epstein, em seu tempo, era um cineasta de vanguarda. A evolução do cinema torna esta vanguarda quase invisível para o assistente de hoje e há até filmagens mais rançosamente clássicas como a do incêndio do final do filme; mas a verdade é que A queda da casa de Usher tem bala suficiente para impor-se ao estudioso de cinema de nossos dias como obra definitiva. O filme (curtíssimo: sessenta e seis minutos) exemplifica com perfeição a teoria de cinema de Epstein: “Fazer da câmera não apenas um olho artificial, mas também um olho associado a uma imaginação-robô, e como se fosse dotado de subjetividade automática.” (apud “Cinema e verdade”, de Francisco Luiz de Almeida Salles). Em A queda da casa de Usher Epstein mostra como a inteligência da máquina cinematográfica pode manifestar-se ao criar (ele, o autor) um tipo pessoal de câmara subjetiva em que a personagem se cola à e é levada pela máquina. A primeira pessoa que narra o conto de Poe é, talvez pela primeira vez no cinema, substituída por uma delirante câmara subjetiva que vai devorando os cenários, assim como o olhar em palavras daquela criatura-testemunha de Poe.

Para o espectador que, deixando de lado a fácil preguiça de pensar sobre cinema que se abate sobre as cabeças de hoje, se extasia diante deste intrigante caso de incesto não consumado contado por Epstein, é inevitável reflexionar que a inteligência da máquina sonhada pelo cineasta de A queda da casa de Usher se brutalizou em realizações comerciais contemporâneas, como X-men 2 (2003), de Bryan Singer, ou Matrix I e II (1999-2003), dos irmãos Larry e Andy Wachowski. Se não formos mais capazes de admirar as grandes obras cinematográficas do passado, aqui e ali não compreendendo a sisudez de algumas colocações estéticas porque hoje tudo é riso (e pode-se rir, indevidamente, do jeito expressionista do ator num filme de 1928), o cinema estará nas mãos dos brutalizadores que, emburrecendo a máquina, decretarão o fim de tudo. “Não obstante isso, eu me propusera ficar algumas semanas naquela mansão de melancolia”, escreve Poe em seu conto, e eu assim adapto metaforicamente esta frase: Apesar de tudo (Matrix e seu séqüito), permanecerei fiel a uma casa de cinema que eu amo, a esta casa chamarei de casa de Usher e ali encarcerarei os filmes que interessam rever interminavelmente, de O encouraçado Potemkin (1925), de S.M. Eiseinstein, a O ataque do presente contra o restante do tempo (1985), de Alexander Kluge.