Antes de mais nada, convém informar que Irreversível (Irreversible; 2002), filme francês de Gaspar Noé, é uma narrativa cinematográfica tão formalista que se torna problemático convertê-la em palavras. A apresentação dos créditos iniciais já é uma provocação experimental, algo inusitado nos cinemas normais e que me evocou os créditos do distante filme brasileiro Brás Cubas (1985), de Júlio Bressane: as palavras têm suas letras justapostas de trás para frente, como num espelho, produzindo uma incômoda dificuldade de assimilação no público; há ali um certo gratuito formal. Depois, o roteiro alinhava as situações invertendo o tempo narrativo, o que aconteceu por último aparece antes na tela: começa pelo desejo de vingança dos homens (o atual e o ex) da mulher estuprada, a cena do estupro, a festa, a vida boa anterior a tudo até chegar à gravidez dela, tudo em ordem cronológica inversa. A primeira parte da realização é construída inteiramente de planos-seqüência móveis, em que a obscuridade da fotografia e a trêfega mobilidade da câmara tornam personagens e cenários em abstrações quase invisíveis (havia muito disto, e de maneira mais radical, nos filmes do russo Sergei Paradjanov). Aí surge a longa cena (filmada sem cortes, um intenso e extenso plano-seqüência) em que a personagem da bela atriz italiana Monica Belluci é estuprada dentro de um túnel por um gigolô que acaba de enfurecer-se com a pessoa que ele explora: o longo plano é fixo (abdica da mobilidade dos planos anteriores), a crueldade do plano com o olhar passivo e irreversível do espectador é extraordinária; a impressão de veracidade vem desta visão fixa da câmara, a vulgaridade e a gratuidade dos gestos das personagens, uma duradoura cena em que o cineasta, exacerbando nos detalhes, exercita as possibilidades sadomasoquistas do cinema; auxiliada pelas palavras antiburguesas do cafetão e pela sodomia violentamente praticada, a imagem deste trecho leva mais adiante aquela seqüência de O último tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, em que Marlon Brando sodomizava Maria Schneider gritando impropérios contra a família e sua educação moral. O estupro de Irreversível é inesquecível porque seu método de filmagem não é nada amável com o espectador; o crítico Tuio Becker, num de seus comentários da juventude em Santa Cruz do Sul, incluído no livro Sublime obsessão (2003), observava com muita graça que na cena do beijo em Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock, o assistente sentia-se beijado; com maldade, pode-se afirmar que na cena do estupro do filme francês aqui analisado toda a platéia é incomodamente estuprada.
A partir do estupro os planos-seqüência, sem abdicar de alguns movimentos de câmara tão arfantes quanto os do início, se tornam mais fixos; por exemplo, a cena da mulher com os dois homens dentro do trem do metrô, discutindo trivialmente questões sexuais, a afeição do cinema francês pelo cotidiano é ali exacerbada. Só no fim da narrativa é que os vertiginosos movimentos circulares do início tornam: só que agora no lugar dos espaços interiores, um plano aberto exterior num gramado; e em vez da fotografia excessivamente escura, uma luminosidade que ajuda a entontecer o espectador.
Se não fossem suas peças de escândalo, Irreversível dificilmente poderia aspirar a ser exibido nos cinemas comerciais por aqui: é dificilmente tragável pelo público comum. É verdade que o realizador é incapaz muitas vezes de tornar belo e profundo seu experimentalismo com a linguagem: seu formalismo às vezes se esboroa, especialmente na primeira parte da narrativa, antes da cena do estupro, que é o que ilumina a humanidade (ainda que baixa) do filme. Algumas cenas extremamente fortes em sua criatividade como cinema (a do estupro, a da conversa entre os três no trem do metrô, os círculos concêntricos finais) revigoram a estética de narrar de Irreversível, obra de arte em que a amabilidade com o observador passa à margem.
Contemplação sobre a gratuidade do homem contemporâneo (há uma corrente mimética entre a gratuidade analisada pelo filme e a própria gratuidade do filme como exposição), Irreversível corresponde a uma forma cinematográfica que tem atravessado as imagens de alguns inconformistas franceses de hoje, como os cineastas Bruno Dumont e Mathieu Kassovitz: radiografar com um incômodo senso do gratuito nossa inapelável gratuidade como seres vazios neste princípio de milênio.