Crítica sobre o filme "Dirigindo no Escuro":

Eron Duarte Fagundes
Dirigindo no Escuro Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 06/02/2004

Quem vir Dirigindo no escuro (Hollywood ending; 2002), o novo filme do norte-americano Woody Allen, imaginará que a notável sacada do cineasta cego é original do cinema de seu realizador, assim como o foram a do homem-camaleão em Zelig (1983), a da personagem-que-sai-da-tela em A rosa púrpura do Cairo (1985) e a da criatura desfocada em Desconstruindo Harry (1997). Allen às vezes se repete em suas incursões pelas narrativas intelectualizadas, de fundo europeu, mas aqui e ali apresenta metamorfoses bastante interessantes quando acresce à sua iconografia cinematográfica estas sacadas pessoais. Os três filmes aludidos e o atual Dirigindo no escuro estão entre suas realizações mais fascinantes graças a estes ícones que Allen expõe com tanta graça.

Não sei se Allen, cinéfilo empedernido, viu, mas a figura do cineasta cego foi erigida num dos episódios mais absurdos e perturbadores de O ataque do presente contra o restante do tempo (1985), a obra-prima do cineasta alemão Alexander Kluge que poucos conhecem e que é todavia um dos mais revolucionários filmes da história. Um cineasta cego dirige um filme e sua assistente lhe descrevia as imagens num copião. É claro que Allen está longe do sarcasmo crítico alucinatoriamente germânico de Kluge; Allen adota uma ironia muitas vezes mais leve e assimilável por seu público, intelectualizado mas indelevelmente preguiçoso para uma ousadia formal como a de Kluge. Se a personagem do cineasta cego não chega a ser nova no cinema, nova é a maneira muito pessoal com que Allen nos diverte compondo, como diretor e como intérprete, um ser que metaforiza todas as questões de seu cinema.

Narrado muitas vezes em harmoniosos planos-seqüência, evitando o habitual plano-contraplano – desde a cena inicial em que os produtores do filme dentro do filme, entre eles uma ex-mulher do protagonista, decidem por Val, o cineasta vivido por Allen, para dirigir o novo filme do estúdio -, Dirigindo no escuro é uma lama irônica que o realizador joga sobre Hollywood e o cinema atual, que às vezes dá mesmo a impressão de ser rodado por pessoas cegas, tantos são os defeitos que topamos na tela. Val tem uma cegueira psicológica às vésperas de começar a rodar o filme e todo o divertido jogo de gestos e metáforas é encenado e interpretado com extrema habilidade por Allen e sua turma.

Como ocorria em Celebridades (1998), Allen é bastante cruel em sua visão da imprensa como um mal necessário para o artista. A figura da repórter enxerida que ao mesmo tempo em que vai divulgar o filme vai intrometer-se demais no mundo privado de todos, é o símbolo da revolta do diretor contra os jornalistas desde a repercussão, no início da última década do século passado, de sua separação da atriz Mia Farrow para ficar maritalmente com a filha adotiva de sua ex-mulher, acrescendo que a nova esposa era quarenta anos mais nova do que ele.

Allen é inegavelmente feliz na conclusão de seu abotoado teorema cinematográfico, quando revela que houve quem (a imprensa americana) detestasse os resultados da realização do cineasta cego e quem (a imprensa francesa –“ainda bem que existem os franceses” é uma frase divertida de Allen no fim da fita) os amasse loucamente. Sintomático: independentemente da miopia do cineasta, seu cinema, com certas características européias (seus passeios pelo universo do sueco Ingmar Bergman, dos italianos Michelangelo Antonioni e Federico Fellini, do francês Eric Rohmer são palpáveis), geralmente é mais apreciado na Europa do que nos Estados Unidos.