As amigas (Le amiche; 1955) pertence à primeira fase da filmografia do italiano Michelangelo Antonioni, antes da revolução trazida pela trilogia de incomunicabilidade (A aventura, 1959; A noite, 1960; O eclipse; 1961). Mas é certamente um dos mais filmes profundos do cineasta, o que é algo supremo para um diretor que pautou toda sua obra por uma profundidade de que o cinema comercial habitualmente se afasta.
Há mesmo uma semelhança entre os planos iniciais de As amigas e aqueles que descortinam o universo tenso e sombrio de A noite: enquanto os créditos de abertura vão aparecendo na tela, a câmara executa um superplano aéreo da cidade de Turim, centro urbano que servirá de cenário para mais este mergulho de Antonioni nas questões do mundo burguês; se a ambientação de A noite se volta para a narrativa do tédio, cruel, misterioso e sem concessões, em As amigas Antonioni vale-se de Turim e sua industrialização para abrir as chagas da angústia humana. Aproveitando com propriedade o aburguesamento do cenário, Antonioni traça uma gênese do que se passa no espírito das pessoas para chegarem ao desespero: de um lado estão os seres frios e cínicos, como o pintor Lourenço e a velha modista-chefe que aparece ao fim do filme, criaturas que em sua incapacidade de amar agridem e se agridem; de outro estão aquelas mulheres sós (como diz o título da novela de Cesare Pavese, escritor italiano que sintomaticamente se suicidou por motivos sentimentais, que serviu de base para o roteiro de Antonioni), almas frágeis e nervosas que se apavoram ante a falta de amor.
Se em A noite o cineasta coloca na abertura a seqüência amarga da doença dum amigo do casal enfarado que protagoniza a trama e em O eclipse ele começa seu questionamento a partir do drama de Vitória que se separa do marido, As amigas não chega a iniciar-se com a dureza dos começos daqueles dois filmes. É verdade que tudo tem seu princípio na tentativa de suicídio de Rosetta, uma manequim rica e emocionalmente perturbada; ocorre, porém, que Antonioni não joga o episódio na aridez formal em que passou a conceber seu cinema a partir da trilogia da incomunicabilidade.
Cheio de preciosas anotações sobre o desespero humano, especialmente o feminino, As amigas tem uma construção cinematográfica final tão geometricamente preciosista quanto aquela de A noite em que Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau se retiram para um gramado onde vasculham suas dores. Em As amigas ocorre assim: Clélia retorna a Roma e, da janela do trem, despede-se de Carlo; a câmara enquadra o trem, Carlo está fora de cena, mas o ator se movimenta, preenche o plano cinematográfico, pára bem ao canto do magistral ângulo obtido pela câmara e depois cruza de novo, e com a mesma compassada lentidão, a mesma linha, retirando-se de cena enquanto no quadro que se apaga o letreiro anuncia o fim de tudo. Sensibilidade estético-arquitetônica de um gênio do cinema.
P.S.: As anotações acima foram extraídas de um texto que escrevi em 02 de agosto de 1981, quando eu contava com vinte e cinco anos, quase vinte e seis. Muito bom que o mercado de DVD esteja investindo no cinema de Antonioni; espero ansiosamente que lancem A Aventura, um Antonioni que este analista nunca teve a oportunidade de ver.