Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/01/2011
Há muitos momentos em Julieta dos espĂritos (Giulietta degli spiriti; 1965), rodado pelo italiano Federico Fellini numa fase imprecisa e dubitativa de sua filmografia, em que os cenários parecem avançar por sobre as personagens aderindo-se finalmente ao interior descontrolado das criaturas fellinianas. Poucas vezes Fellini foi tĂŁo terrivelmente metafĂłrico quanto neste filme; para Fellini, aqui mais do que em qualquer outro trabalho, o mundo Ă© uma metáfora da mente: um ser de Fellini, assim como seu criador, inventa o universo, muda-o num signo puro, perigosamente abstrato, perigosamente vazio, porĂ©m dotado duma pujança de formas que nos tira o chĂŁo e atĂ© o fĂ´lego. Em Casanova de Fellini (1976) uma personagem da nobreza europeia antiga exclamava que ali tudo era metafĂłrico; Fellini já vinha trabalhando a questĂŁo da metáfora, e seus delĂrios exagerados em Julieta dos espĂritos sĂł topariam imagens assemelhadas (a excentricidade Ă beira do gratuito, do quase-ridĂculo) em A cidade das mulheres (1980), outra das visões fellinianas eternamente malditas.
Em seu tempo, Julieta dos espĂritos nĂŁo foi muito bem recebido por aqueles que, a despeito de A doce vida (1960) e Oito e meio (1963), ainda nutriam esperanças de que o cineasta voltasse ao teor formal de suas primeiras obras-primas, como Os boas-vidas (1953), A estrada (1954) e As noites de Cabiria (1957), onde os aspectos fellinianos de linguagem eram controlados por escrĂşpulos realistas. Numa cena de Oito e meio uma repĂłrter, interpretando um momentâneo silĂŞncio do diretor de cinema Guido Anselmi diante duma pergunta, volta-se para a câmara e afirma: “Ele nĂŁo tem mais nada a dizer”. Na dĂ©cada de 60, diante de Julieta dos espĂritos e depois Satyricon (1969), os analistas usaram a frase de Oito e meio como uma autoprofecia de Fellini, que teria esgotado os recursos de sua arte, perdendo-se na poeira. Uma revisĂŁo de Julieta dos espĂritos permite avaliar seus pequenos problemas, uma narrativa que se descontrola narcisisticamente produzindo um ritmo Ă s vezes incĂ´modo, mas revela notavelmente: ninguĂ©m no cinema filmou com esta explosĂŁo vital de Fellini, que transforma o retrato psicanalĂtico da burguesa Julieta (assombrada por seus fantasmas, entre eles o do adultĂ©rio do marido, Giorgio) num espetáculo encantador. Mesmo que Fellini se tenha depois recuperado dos possĂveis desacertos de seus filmes no fim da dĂ©cada de 60 com obras-primas como Roma de Fellini (1972), Amarcord (1973) ou mesmo o incompreendido Casanova de Fellini, este Julieta dos espĂritos, para o felliniano que o revĂŞ, Ă© um repertĂłrio barroco que ajuda a interpretar os dilemas estĂ©ticos de seu realizador.
Depois de vagar com sua câmara por fantasmas assustadores da mente de Julieta, Fellini vai dar cabo de seu filme com uma sequência em que um primeiro plano fixo de Giulietta Masina (um dos rostos do cinema) se contrapõe a uma panorâmica em plano geral em que Julieta caminha num intenso cenário verde natural: a última imagem da fita é o lento movimento lateral da câmara que capta o andar de Julieta entre as árvores.
Numa comparação clássica com o antĂpoda de Fellini, pode-se dizer que Julieta dos espĂritos tem uma função idĂŞntica Ă quela de Face a face (1976) no cinema do sueco Ingmar Bergman. As fantasias expressionistas da criatura de Liv Ullmann no filme de Bergman sĂŁo como os delĂrios surrealistas da personagem de Giulietta Masina no de Fellini, claro: cada cineasta expõe a psicanálise a seu modo, seco e árido em Bergman, espetacular e maravilhoso em Fellini. Outro dado que reforça a aproximação: na Ă©poca de Face a face, que fazia paralelo com Cenas de um casamento (1974) depois da exuberância de Gritos e sussurros (1972), Bergman atravessava uma fase de indefinições que perturbariam seus admiradores. (Eron Fagundes)