Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/01/2011
A revisão de No limiar da vida (Nära livet; 1958), obra-prima do sueco Ingmar Bergman, quase trinta anos depois da primeira vez em que tais imagens bateram olhos adentro do espectador mantém a força e a expressividade do primeiro encontro. Nada mudou: as angústias do observador permanecem, ainda que de quando em quando hibernem na futilidade do mundo, e as inquietações de Bergman com o destino dos seres não se alteram mas se renovam com um sopro cinematográfico único.
Nada mudou. E é um pouco como se as coisas estivessem mudadas em seus interstÃcios. Lá está o tenso e minúsculo cenário duma maternidade sueca no fim dos anos 50 do século XX escolhido pelo realizador para buscar elementos claustrofóbicos na linguagem cinematográfica. Lá estão as três grávidas diferentes que o acaso reuniu num quarto de maternidade, sob a batuta inspiradÃssima do roteiro de Bergman. E ali está a precisão estética de Bergman para fazer, melhor que ninguém, a crônica dos abismos da alma do indivÃduo do século XX. Bergman passa do drama duma personagem para outra sem causar dispersão, graças ao rigor de sua composição cênica e dramática. Em pouco menos noventa minutos de filme Bergman distribui poucas e agudas observações sobre suas criaturas; um poder de sÃntese que o diretor sueco certamente herdou da obra do italiano Roberto Rossellini. E em No limiar da vida Bergman vai tratar com melancolia trágica a ironia dos destinos humanos: o cenário da maternidade é metaforicamente o útero da vida, a vida como mãe; a intensidade bergmaniana vem da força com que ele amplia os pequenos dramas individuais para uma reflexão metafÃsca, paraexistencialista, fugindo à quilo que o italiano Michelangelo Antonioni fazia pela mesma época.
A narrativa de No limiar da vida abre com a chegada de Cecilia Ellus à clÃnica. Ela estava grávida, chega com hemorragia. Um aborto natural. Aparece seu marido, com quem ela vive a discutir: o casamento não vai bem e ela culpa o mal-estar conjugal pela perda do bebê. Uma austera Ingrid Thulin e um desorientado (adrede) Erland Josephson vivem este casal.
No quarto Cecilia dá com Stina, a casada boba alegre, feliz com a gravidez, seu marido também um bobo inconsequente. A felicidade contrastante e à s vezes patética. Eva Dalhbeck e Max von Sydow encarnam com ironia metalinguÃstica o estado do casal.
A terceira mulher é a mais moça, uma pós-adolescente, foi engravidada por um namorado que não assume, tentou o aborto, o bebê sobreviveu, ela está ali carregando uma gravidez mas teme a recepção de sua mãe ao estado de coisas. É a mais desesperada das três mulheres. É uma estudadamente infantil Bibi Andersson quem vive a personagem, chamada Hjördis.
Como se concluirão estas três histórias que na verdade formam uma única história-parábola? Stina tem um parto violento, perde o bebê e se revolta. É particularmente cruel a montagem de Bergman após este parto frustrado: planos de diversos bebês retirados de gavetas e entregues às mães da maternidade para darem de mamar, sugando seios que aparecem em sugestivos primeiros planos, antecedem os planos que mostram a maca de Stina aportando sombriamente ao quarto onde a esperam expectantes companheiras. Hjördis liga para a mãe no dia em que vai ter alta e, surpresa, descobre que a mãe a aceita mesmo com o bebê. Cecilia segue seu rumo, observando os contrastes de caminhos de suas duas companheiras de quarto; é Cecilia a que mais se parece com uma representante em cena do olhar de Bergman sobre o mundo.
Há quem ache Bergman árido e teatral. E de fato o é. Mas é desta mesma aridez e deste senso de encenação que nasceu do teatro que Bergman extrai uma paixão de filmar que encanta, ainda que seu mergulho no sofrimento humano seja atroz. (Eron Fagundes)