Crítica sobre o filme "Chamas Que Não Se Apagam":

Eron Duarte Fagundes
Chamas Que Não Se Apagam Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 04/12/2010
Há muitas vezes um viés irônico muito trabalhado nas histórias sentimentais contadas em Hollywood pelo cineasta de origem dinamarquesa Douglas Sirk. O letreiro que aparece no início de Chamas que não se apagam (There’s always tomorrow; 1956), uma das obras-primas de Sirk, diz, enunciando ironicamente um conto de fadas da família americana dos anos 50: “Era uma vez na ensolarada Califórnia...†A ironia é sublinhada com absoluto refinamento na imagem que sucede ao letreiro: o que vem não são paisagens de sol, porém planos que mostram esquinas encharcadas, pessoas de guarda-chuvas e pancadas d’água bastante fortes. Ou seja: o sol da Califórnia chora.

Chamas que não se apagam é um filme luminoso que convida às comoções lacrimosas do espectador. Sirk movimenta suas personagens entre sombras e clarões captados com mestria pela fotografia de Russell Metty; o plano cinematográfico de Sirk vai em busca duma plástica do preto-e-branco que atinge níveis aqui e ali arrebatadores.

A narrativa de Sirk é uma história de amores e dos frágeis sentimentos que fazem suas criaturas oscilarem entre os caminhos de suas vidas. Clifford Groves é um empresário do ramo de brinquedos, bem casado com Marion e tendo três filhos (um rapaz, uma moça e uma menina); mas, desde as primeiras sequências do filme, fica claro que, no meio de tanta felicidade, Clifford é um tanto ignorado pela família: a esposa dá mais atenção aos filhos que ao marido, os filhos se voltam mais para a mãe que para o pai. Sob a aparência de desvios fortuitos, muitos projetos de aproximação dele à mulher são abortados mal esboçados. Isto não chega a causar nenhum conflito (embora Sirk saliente estas divergências com seu olho cinematográfico) durante um tempo. Até o momento em que Cliffor reencontra uma velha amida, a modista Norma Vale. Pouco a pouco os desvios fortuitos que o afastam da família o chegam para a amiga. Lentamente Sirk aduz que Norma é apaixonada por Clifford há vinte anos. E Clifford, com um atraso de duas décadas, vem a apaixonar-se por Norma. O amor torna-se impossível. O afastamento final dos amantes (que não chegam a um adultério senão sentimental) é inevitável. A família americana modelo anos 50 vence, mas a marca indelével de Norma, a amiga que ama e que também abdicou opor amor, se cola à pele do celuloide de Sirk.

Uma das referências centrais de Chamas que não se apagam é mesmo o romancista Theodore Dreiser, cujo romance Uma tragédia americana (1925) é citado num dos diálogos de “equívoco†do filme de Sirk, quando o filho, comparando a ingenuidade de Clifford ao falar da amiga para a própria esposa com a falsa ingenuidade duma personagem de Dreiser. Se as criaturas de Sirk muitas vezes desconhecem suas motivações, a narrativa do cineasta é profundamente crítica em sua visão social, ainda que à custa dos melodramas mais ingênuos e moralistas.

Um dos grandes trunfos de Chamas que não se apagam é o elenco, dirigido com precisão por Sirk. Barbara Stanwyck tem uma luminosidade de interpretação autenticamente mágica na pele de Norma. Fred MacMurray vive com desprendimento a caracterização do marido americano clássico da época. Joan Bennet, vista em Na teia do destino (1948), do austríaco Max Ophüls, corresponde bem à azafamada esposa de classe média ianque. (Eron Fagundes)