Crítica sobre o filme "Bem Amado, O":

Rubens Ewald Filho
Bem Amado, O Por Rubens Ewald Filho
| Data: 26/11/2010
O brasileiro Dias Gomes foi um dramaturgo antenado com as grandes questões de seu tempo histórico, em seu país; e acima de tudo um inventivo criador de situações cuja base real nunca é uma coincidência. O bem amado é um de seus textos mais demolidores; nascido como peça teatral na década de 60 e transformada numa novela televisiva que prendeu a atenção de espectadores do entretenimento quanto de gente que pensava a questão brasileira, esta obra de Dias Gomes erige uma figura definitiva de nossa ficção, o político Odorico Paraguaçu, cujo verbo empolado e o gosto por saltitantes e relampejantes e esquisitos neologismos indicam claramente sua inspiração, o ex-presidente brasileiro Jânio Quadros, mas cuja grandeza ficcional se deve ao talento verbal e narrativo de Gomes.

Guel Arraes, antes um homem de televisão que de cinema mas que faz com clareza e autenticidade estas transposições de linguagem, recria o universo de Dias Gomes no filme O bem amado (2010); apesar de suas habituais pegadas cinematográficas falhadas e inconsistentes em algumas conexões de montagem (algo que tornou filmes como O auto da compadecida, 2000, e Lisbela e o prisioneiro, 2003, filmes divertidos de passagem), O bem amado resiste bem como uma atual reflexão sobre a história política brasileira (as ligações metafóricas entre Odorico e Jânio, Sucupira e o Brasil, o cemitério de Sucupira e o Brasil como um cemitério das cabeças brasileiras exiladas) e como uma engenhosa atualização do vocabulário de Odorico/Gomes (covardista e valentoso são termos esdrúxulos, assim como é esdrúxula e aparição final das Diretas Já de 1984 na montagem do filme, mas faz sentido). E o elenco (Marco Nanini à frente), convenhamos, faz render a veia cômica e crítica do texto; destaque para a sensualidade de Maria Flor (filho da grande cineasta Joaquim Pedro de Andrade) e para o desempenho sob medida de um José Wilker que depois de várias interpretações torturantes é resgatado um pouco em sua autenticidade.

Talvez O bem amado (com seus altos e baixos) tenha uma capacidade de público mais exigida para um homem de televisão como Arraes, mas cabe-me lembrar que o melhor filme do cineasta é o anterior, Romance (2008), pouco visto, pouco referido, utilizando com muito mais modéstia as concessões ao popularesco que parece ser uma das marcas do cinema de Arraes. (Eron Fagundes)

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Era uma temeridade fazer uma versão para o cinema de uma amada telenovela (73) e depois série de TV (80 em diante), que ainda está na memória afetiva de todos. Ninguém esqueceu Paulo Gracindo em seu trabalho mais famoso e personagem mais marcante. E apesar da popularidade de Marco Nanini e da certeza de que é um de nossos melhores atores, ele não tem o ar nordestino, o jeito baiano e acaba parecendo um impostor de cabelo vermelho que entrou por engano no set de filmagem.

Na verdade, tudo é um enorme equívoco e certamente o pior filme de Guel Arraes. Por mais que eu tenha me esforçado, não consegui dar nem uma única risada. A velha conhecida história toma rumos inesperados e todos desagradáveis. Embora Arraes tente em algumas cenas inventar um pouco (tem hora de que vira filme/reportagem, outra que finge ser fotonovela), esses momentos são esparsos e descartáveis. Já fiquei chocado na primeira cena do filme quando aparecem figurantes fazendo manifestação contra o prefeito anterior de Sucupira. Pensei que finalmente o cinema brasileiro tinha resolvido esse problema de figurantes. Mas não, durante todo o filme há as piores caras, gente olhando para a câmera, fazendo careta a ponto de que, em certa altura, passam a filmá-los do alto, para evitar a cara deles. Será citação de um defeito clássico do cinema nacional ou perderam a noção?

E por aí vai, as irmãs cajazeiras diminuíram de idade e agora são mulheres mais bonitas, quando a graça era justamente a de que elas seriam coroas pouco atraentes (Zezé, sem papel, escora-se num penteado, e Andréa tem a participação mais ingrata). Todas fazem a mesma coisa,dão em cima do prefeito. Aliás, por economia, há um grande cenário que é a sala do prefeito, com ante-sala e mais ninguém em vista. Aparece o secretário, o Borboleta (Nachtergaele, que está até discreto, não é páreo para Emiliano de Queiroz), e de vez em quando algum soldado. Não há mais ninguém nesse lugar desabitado, onde o prefeito nunca faz nada (e não se deram ao trabalho de construir uma casa para ele, o que poderia ter sido ao menos um lugar curioso de se imaginar sua decoração).

Também da cidade se vê uma nesga de mar (para justificar a cena em que a filha do Odorico toma banho sem sutiã, já que permanece a trama paralela de ela namorar um fotógrafo da oposição, o Caio Blat). E não há outro lugar, a não ser um projeto de cemitério. Assim a prefeitura não tem vida, Nanini fica se repetindo e os erros de português passam batido, as irmãs são figuras decorativas e o José Wilker resolveu fazer o Zeca Diabo de outra forma, naturalmente sem imitar Lima Duarte. Compõe um tipo até interessante, diferente do que tem feito ultimamente, mas com um único defeito: não tem graça, não combina com o resto do filme. O que acaba sendo um elogio porque tudo é uma grande bola fora. Começando com o roteiro ruim, que insiste tolamente em fazer paralelos com a situação do mundo e do país, no começo dos anos 60, com a Guerra Fria e o golpe militar.

Embora se esforcem em demonstrar algo, só perdem tempo para melhor construir a figura de um novo Odorico, já que não ficamos sabendo nada sobre ele, nenhum dado de humanidade (cinema não é série ou novela, onde dá para aceitar alguns poucos traços de características, aqui é sempre a mesma situação, ele querendo enganar e roubar, insistindo em conseguir um corpo para inaugurar o cemitério). Outra coisa da montagem é que, de tempos em tempos, entra alguém como Caetano cantando ou fazendo louvor ao Partido Comunista, ou com alguma musiquinha antiga, uma pausa para respiração que sempre se espera em filme de Paula Lavigne.

Que oportunidade perdida de satirizar a corrupção atual do Brasil em todos os níveis! Em vez disso fizeram uma cópia mal feita da obra original. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos. Rubens tem um blog exclusivo no portal R7)