Crítica sobre o filme "Primeiro Mentiroso, O":

Wally Soares
Primeiro Mentiroso, O Por Wally Soares
| Data: 27/08/2010
Em seu primeiro trabalho por trás das câmeras de um longa-metragem (e na assinatura de um roteiro cinematográfico), Ricky Gervais se juntou ao também novato Matthew Robinson para criar O Primeiro Mentiroso, comédia de conceito impagável que prometia ser hilariante. Gervais, cujos maiores sucessos como escritor surgiram em séries televisivas elogiadas como The Office e Extras tenta, com muito esforço, canalizar a genialidade cômica de seus projetos na TV. Em parte, ele consegue. O problema é que, inexperiente em realmente fazer Cinema, Gervais imprime ao filme um clima excessivamente amador, de sitcom. As piadas, portanto, estagnam-se, já que o timing cômico surge deslocado em história que, mesmo virtuosa, simplesmente não foi inteiramente bem planejada.

O enredo é interessantíssimo: a história se passa em um mundo onde o homem ainda não inventou a mentira. Descaradamente sinceros, os seres humanos propagam monotonia com suas habilidades infalíveis de dizer sempre o que pensam. Gervais interpreta Mark Bellison, um escritor de roteiros palestrantes (como não existe mentira nesta realidade, a imaginação também não – portanto, o entretenimento se limita a roteirizações de acontecimentos históricos lidos por uma pessoa frente a uma câmera) prestes a ser demitido. Além de perder o emprego, Bellison ainda precisa encarar a possibilidade de ficar sem teto e ainda viver com a desilusão de ter perdido a mulher de seus sonhos, Anna McDoogles (Jennifer Garner). É no fundo do poço que, necessitando de dinheiro, Bellisson impulsivamente “diz algo que não 醖 logo, criando a Mentira, que lhe dá um poder inestimável.

Se em terra de cego quem tem olho é Rei, é bem assim que o personagem de Gervais se sente quando descobre a preciosidade da mentira em realidade de ingênuos. A proposta da comédia é tão boa e refrescante que, mesmo sem possuir grandes piadas ou momentos hilários, os primeiros trinta minutos já nos deixam com a impressão de que estamos vendo uma obra esperta e sagaz. Qualidades que, infelizmente, aos poucos vão desaparecendo. A inexperiência de Gervais e Robinson começa a pesar e o roteiro vai ficando muito raso e óbvio, mesmo com algumas sacadas bem ácidas ao longo do caminho (das quais discursarei depois). No final das contas, o que começa original percorre uma jornada irregular até a pura obviedade – os últimos minutos da película são especialmente fracos.

A direção também não é das mais inspiradas. Se a indefinição de época e espaço funcionou muitíssimo bem para não criar qualquer familiaridade com nosso próprio mundo ou realidade, a câmera de Gervais percorre os cenários e personagens de maneira seca e sem graça, abdicando qualquer textura ou significância. Logo, torna-se um filme não só decepcionante no desenvolvimento de suas idéias, mas precário na canalização visual e narrativa destas. Como Cinema, portanto, O Primeiro Mentiroso é bem falho e problemático. O que o mantém assistível, porém, são as pitadas de genialidade que chegam como relâmpagos entre uma cena ou outra. Destaco aqui a visão crítica que o filme acaba despertando acerca da moralidade do homem, a partir de seus questionamentos de Deus. De forma bem crua, estamos falando aqui de um filme assumidamente ateu, que usa seu enredo cômico para trazer a tona questões um tanto sérias – não é surpresa, então, quando tudo torna-se bem melodramático em seu ato final. Esse desequilíbrio na abordagem de boas idéias é fator comum na obra, que surge como a síntese perfeita do “acerta e erraâ€.

Polêmico em sua visão de Deus e da Bíblia (e na sua paródia de Moisés e os Dez Mandamentos), o longa-metragem ainda desperta discussões interessantes acerca do valor da imaginação – ou seja, da ficção – tornando-se uma homenagem distintiva do próprio Cinema. Há também momentos de humor memoráveis, como uma propaganda da Pepsi e uma cena no asilo, como também uma sequência dramática em leito de morte que traz Gervais em excelente momento. Gervais, alias, é de um humor excessivo – algo óbvio desde os créditos iniciais com sua narração boba – mas às vezes acerta na caracterização perfeitamente. O elenco surge formidável, com participações excepcionais de Tina Fey, Philip Seymour Hoffman e Edward Norton.

Com tantas virtudes, é até lamentável o fato de O Primeiro Mentiroso se relegar ao mero “divertimento passageiroâ€. Gervais deveria ter permanecido como protagonista e apenas criador da história. Os cargos de roteirista e diretor precisavam ter sido preenchidos por algum cineasta que não tivesse tanta preguiça (ou mesmo amadorismo) como o que foi revelado aqui. Porque, no final das contas, as contradições do roteiro e sua confusão primitiva de “mentira†e “omissão†pesam consideravelmente na hora de apreciar a sessão. O filme é razoavelmente agradável. Poderia ter sido brilhante. (Wally Soares)