Por Rubens Ewald Filho
| Data: 16/08/2010
Graças a um texto crÃtico de Vinicius de Moraes publicado no jornal “Último Hora†do Rio, em 1959, a novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, publicada na revista Senhor em 1959 e editada em livro em 1961, ganhou a categoria de ser a mais elaborada das obras do escritor baiano Jorge Amado, ainda que não conte com o prestÃgio público de Gabriela, cravo e canela (1958) e reine ainda hoje numa “obscuridade elitista†dentro da obra popular de Jorge. O texto de Vinicius, preciso de conceitos e criativo nos passos de linguagem como convém a um poeta da estatura de Vinicius, vai ainda mais longe do que comparar a novela com outros trabalhos do autor baiano; elegendo-a como a melhor novela brasileira e classificando Gabriela como o cume do romance brasileiro, Vinicius vê em Amado um romancista superior a Machado de Assis, revelando que retomou leituras dos principais romances e contos do ficcionista carioca para, como diz, “tirar teimaâ€.
Na verdade, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, por seus enxugamentos, talvez seja mesmo aquele texto onde os defeitos de ligeireza e pressa poéticas de Jorge são menos sentidos na narrativa. As caracterÃsticas anedotárias (e muito baianas) da trama se assemelham um pouco à jocosidade vagabunda e fútil de João Ubaldo Ribeiro em O santo que não acreditava em Deus (1981), filmado muitos anos depois por Carlos Diegues com o tÃtulo de Deus é brasileiro (2003); ou seja, uma piada que quer atingir o posto de parábola de um povo. Jorge vai centrar seu eixo narrativo numa evocação entre o mágico e o épico de uma personagem desabusadamente baiana, malandramente baiana, um pai de famÃlia que nos anos finais abandona as hipocrisias sociais para se dedicar a seu espÃrito vagabundo, mulherengo e beberrão, constrangendo sua famÃlia que espalha sua falsa morte para livrar-se da mancha moral de sua presença; morrendo numa de suas fuzarcas com marginais e meretrizes, seu cadáver é roubado por seus parceiros de festa, o defunto é conduzido como vivo pelas gandaias dos becos de Salvador e vai ter sua segunda (ou terceira) morte numa tempestade marÃtima, afundando-se no remoto da baÃa, como ele de fato desejava, amante do mar, como toda personagem baiana de Jorge Amado. Vinicius certamente exagerou na valorização desta novela, mas soube enxergar que ela detém torneios de fala que tornam a lÃngua portuguesa plena duma vivacidade que a silogÃstica de Machado teria dificuldade em manter; a fecundidade peculiar da lÃngua de Jorge é necessária para libertar do nada algumas de nossas personagens.
O cineasta baiano Sérgio Machado filmou a novela de Amado com o tÃtulo de Quincas Berro d´Ãgua (2010). Machado compôs sua narrativa como se fosse contada pelo olhar do defunto, algo como se Quincas fosse a versão mais popular de Brás Cubas, aquela da malandragem e vigarice brasileiras mas “sem fumos de fidalgoâ€. Há, pois, um deslocamento de ponto de vista, esquece-se o divertido narrador onisciente da novela (o épico-mágico) e se esbarra num narrador quase-primeira-pessoa que passa a perturbar o método de contar histórias imaginado por Amado. Longe de buscar a leveza do texto de Amado, a opção de Machado torna o ar narrativo meio pesado, mesmo que a bagunça em cena convide ao lascivo e ao descontraÃdo, aquele “brincar em serviço†que Vinicius identificava na escrita de Amado.
Sérgio Machado rodou antes o documentário Onde a terra acaba (2001; que evocava a figura mÃtica do cineasta brasileiro Mário Peixoto) e a ficção Cidade baixa (2005), dois filmes acima da média do que se vê habitualmente nas salas de cinema. Em Quincas Berro d´Ãgua ele se desconcentra do foco cinematográfico e suas intenções se desmancham pelo caminho. Sobra mais a anedota do que a parábola. E o roteiro é bastante avaro com o belo texto de Amado, talvez temendo abastardar o cinema com a literatura; mas o abastardamento vem por outro naipe, que é mesmo a falta de inteireza cinematográfica, apesar do bom elenco que divide a cena e de algumas irreverências de encenação.
O cinema brasileiro tem namorado bastante a literatura de Jorge Amado, o que é justo, não somente por sua importância literária, mas ainda por dispor de elementos que favorecem um bom roteiro de cinema. Bruno Barreto fez de Dona Flor e seus dois maridos (1976) o maior sucesso comercial de sua carreira e um dos maiores de nosso cinema. Nelson Pereira dos Santos fez um controvertido Tenda dos milagres (1977), que Jean-Claude Bernardet considera contraditório em suas teses da miscigenação (a mesma crÃtica que se faz ao sociólogo Gilberto Freyre, de quem Nelson é tributário) e no entanto José Carlos Avellar atenta para a natureza criativamente popular de articular as falas no filme como resistência ao instrumento de dominação linguagem que deve ser desmontado. Creio que Quincas Berro d´Ãgua não tem os elementos de discussão (estética ou ideológica) que o possam fazer sobreviver para além dos gostos pessoais, como tem ocorrido com os filmes citados de Bruno e Nelson. Há um gesso rançoso em Quincas Berro d´Ãgua que o impede de crescer no tempo e no espaço. (Eron Fagundes)
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Coproduzida por Walter Salles e Guel Arraes, esta é a primeira adaptação para o cinema de uma novela (conto longo) de Jorge Amado. Eu me lembro de uma adaptação curta de Avancini para a Globo com o Paulo Gracindo. Agora feita pelo diretor de Cidade Baixa (há uma história curiosa sobre Sérgio Machado, que foi iniciado na carreira por Jorge, que havia visto um curta dele e por isso o recomendou para Waltinho Salles, de quem este seria assistente e parceiro). <;p>
Todo rodado em locações (menos a cena do barco que foi feita em estúdio) e quase sempre em noturnas, o filme é uma comédia sobre um funcionário público bem comportado, isso nos anos 50, o que nunca é muito explicado, que largou tudo para ser um bêbado feliz, amante de uma cafetina latina.
Quando morre inesperadamente, os quatro melhores amigos carregam seu corpo pelas ruas do Pelourinho, de bar em bar, de aventura em aventura. Dá para imaginar que essa história tenha inspirado uma comédia americana, onde eles fazem algo parecido, que foi Weekend at Bernie´s /Um Morto Muito louco (89), de Ted Kotcheff, que foi tão bem que teve até continuação em 93. Aqui tiveram a sorte de encontrar Paulo José, que enfrenta empecilhos de sua doença e faz um morto muito simpático. Ele praticamente nunca é dublado, só na sequência onde jogam o corpo do prédio, ajudando a dar padrão a um elenco muito bom, onde todos se desincumbem muito bem de sua missão (em particular os quatro atores baianos que fazem os amigos). Também gostei de Mariana Ximenes, que torna humana um personagem ingrato (a filha do bêbado, o final para ela e o marido, é particularmente difÃcil de acreditar, sem a menor lógica com tudo que foi mostrado antes).
Se o filme tem um problema é o respeito excessivo que Sérgio teve com o texto, evitando que ele caÃsse na chanchada. Até aà tudo bem, mas podia ter acentuado mais a farsa, deixado rolar mais livre o humor, que certamente o filme teria um resultado mais engraçado. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos. Rubens tem um blog exclusivo sobre cinema no portal R7)