Antes de 2009, ano que entregou o inesperadamente ótimo Tempos de Paz, o cineasta brasileiro Daniel Filho (sinônimo de sucesso comercial) era relegado à mediocridade. Se Eu Fosse Você e sua sequência, os maiores sucessos de sua carreira (e do cinema brasileiro), eram bobos, previsíveis e quase amadores na cinematografia pedestre. O fundo do poço para Filho veio mesmo, porém, com o trágico Primo Basílio – um dos piores filmes nacionais dos últimos tempos. No entanto, com a surpresa extremamente agradável que representou Tempo de Paz (um olhar histórico e humano que homenageia a beleza do teatro), Filho revelou uma veia até então desconhecida. E Chico Xavier – que poderia facilmente ter caído no simplista e no melodrama – prova que o diretor, quando dedicado, possui sim certo talento. Ainda que imperfeito e com sua parcela de falhas, o longa-metragem traz consigo virtudes o suficiente para não só se distanciar dos trabalhos prévios de Daniel Filho (totalmente enraizados na mais pura falibilidade da televisão nacional), mas retrata o personagem título verídico com sensibilidade e uma terna desenvoltura para com sua frágil e expressiva existência.
Escrito pelo instável Marcos Benstein (roteirista do maravilhoso Central do Brasil, mas também do péssimo Inesquecível), o filme se divide entre o espaço “atual” (o célebre momento de Chico Xavier, aos 59 anos, em frente à rede nacional na entrevista que caracterizou a forma como o mundo o enxergava) e flashbacks que iam desde sua infância atormentada aos 8 anos até o momento da difusão de seu dom após os 21 anos de idade. Batizado Francisco Cândido Xavier, aos 8 anos já conversava com sua falecida mãe e, posteriormente, visitado por um espírito que o seguiria até a morte. Por meio dos espíritos que o visitavam, praticou a psicografia, redigindo inúmeros livros ao longo de sua vida (cuja autoria era exclusiva dos “escritores fantasmas”). Logo se transformando em um personagem mundial polêmico – amado por muitos, odiado por vários outros – seu talento repercutiu por meio de pessoas que entravam em contato com entes queridos mortos.
Na abertura da película, Daniel Filho espertamente constata que “A história de um homem não cabe em um filme. O que se pode é ser fiel à essência de sua trajetória”. E, tendo em mãos um personagem tão importante e de repercussão tão vasta quanto Chico Xavier, o perigo de se fazer uma obra de meias-verdades é grande. Porém, fazendo valer sua frase de abertura, Filho (e o roteirista) conseguem se manter, ao longo da metragem, decentes e introspectivos ao capturar quem foi de verdade a pessoa por trás dos simbólicos óculos e lápis. A trajetória de Chico é bem delineada por transições temporais quase sempre bem elaboradas e um roteiro que evita pintá-lo como uma mera caricatura. Ao fim da sessão, sentimos realmente que conhecemos Chico Xavier e, mais importante, compreendemos sua jornada.
Apesar de ser o principal nome do espiritismo no século XX, não é preciso ser um religioso (de qualquer espécie) para apreciar a obra. O próprio Daniel Filho é, por conhecimento, ateu. O que realmente importa aqui não são exatamente os aspectos místicos e religiosos de Chico – ainda que sejam elementos bem pontuados – mas o que ele de fato conquistou com seu dom e, sim, seu amor. E, neste caso, é quase inevitável reconhecer que o personagem é tratado com o esperado luxo para uma biografia convencional. Não ousando, Bernstein segue a fórmula, adaptando o livro de Marcel Souto Maior com o cuidado de esculpir Chico para que sejam realçados seus atributos com a maior das ressonâncias. Uma das fraquezas do filme, obviamente, já que evita que nos aprofundamos completamente nos temores e incertezas de quem foi o homem tão atormentado pelo obscuro.
Ainda existem pecadilhos isolados ao longo da metragem, como a escolha forçada de colocar o personagem jovem usando asas de anjo em certo instante. O espírito que persegue Chico ao longo de sua existência surge, por sua vez, artificial, com atuação fraquíssima de André Dias. Ele protagoniza, alias, a pior cena do filme, quando uma turbulência no avião de Chico o traz gritando. O evento é narrado pelo próprio Chico na entrevista em rede nacional, portanto sua encenação surge dispensável – em uma tentativa de alívio cômico lamentável. São pequenos defeitos que unem-se ao formato convencional para limitar Chico Xavier, uma biografia que, ainda assim, surpreende pelas fortes virtudes.
O mais interessante do filme é uma história que se desenvolve paralelamente ao conto biográfico de Chico, sobre um casal em luto pela morte do filho. Muito bem conduzida, a sub-trama é caracterizada inicialmente pelas excelentes performances de Christiane Torloni e Tony Ramos, apenas para mesclar-se com o resto da narrativa magnificamente no último ato. Representa, por si só, a complementação ideal para o alcance da figura de Chico, rendendo momentos dramáticos extremamente consistentes. Impossível não elogiar, também, os três atores que interpretam Chico nos três momentos de sua vida. Desde o competente Matheus Costa, passando pelo hábil Ângelo Antônio e finalizando-se no fantástico Nelson Xavier, as atuações são elementos imprescindíveis para a conexão da audiência com o personagem. Conexão, alias, que já transformou o longa-metragem em sucesso comercial estrondoso. Desta vez, Daniel Filho pode regozijar-se justificadamente, pois fez uma obra à altura de sua repercussão.