Crítica sobre o filme "Caixa, A":

Wally Soares
Caixa, A Por Wally Soares
| Data: 18/06/2010
Depois de Donnie Darko, filme independente que se tornou fenômeno cult, o jovem e ambicioso Richard Kelly tirou seu tempo apenas para roteirizar o decente Domino: A Caçador de Recompensas. Talvez com medo de não conseguir repetir algo à altura de sua obra-prima, foram cinco anos até sair seu segundo filme: o duramente criticado Southland Tales: O Fim do Mundo. Editado por ordem do estúdio, o longa-metragem não saiu como Kelly queria, de fato surgindo irregular e com um tremendo excesso de informações. Ainda assim, era um “épico†da ficção-científica repleto de simbolismos, personagens interessantes, tramas incríveis e uma direção mergulhada em referências pop. Era para um público restrito, que não só via o filme, mas sentia-o. Não satisfeito em polemizar, A Caixa, terceiro longa-metragem do cineasta, volta a brincar com o gênero da ficção-científica de forma bastante ousada. Abandonando qualquer vestígio do convencionalismo, nada nesta obra soa familiar – tudo muito inventivo. E, justo por isso, é um filme imperdível.

O roteiro escrito pelo próprio Kelly tem como base um conto de Richard Matheson (autor que também deu origem a Eu Sou a Lenda e Ecos do Além). Digamos que o enredo inicial de A Caixa manteve-se fiel ao conto: Casal americano de classe média é visitado por um homem misterioso portando uma caixa. Naquela sofisticada caixa, há um botão. O senhor os instrui que, caso apertem o botão, ganharão a quantia de um milhão de dólares. Por outro lado, alguém que eles não conhecem morrerá. O resto do filme é a imaginação fértil de Kelly, que não hesita também em trazer um tom mais pessoal ao projeto, buscando referências em sua própria família.

Quanto menos você souber sobre A Caixa, melhor. Ainda assim, não trata-se de um filme apoiado em revira-voltas, apesar de uma ou outra existir. O que importa aqui é a viagem, e não necessariamente o destino (que, por sua vez, não decepciona). Antes de qualquer coisa, porém, é necessário afirmar que – em sua totalidade – trata-se de um filme de Richard Kelly. Em outras palavras: utiliza da ficção-científica, foge do lugar comum e mergulha o espectador em uma jornada estética e sensorial enigmática. É a assinatura de um cineasta que, mesmo tão novo, consegue ser tão expressivo. Se aqui seu roteiro possui irregularidades e pecadilhos, o mesmo não pode ser dito por seu trabalho por trás das câmeras, construindo uma obra profundamente bela e instigante no que diz respeito à narrativa, enquadramentos, fluidez e impacto dramático.

A Caixa abre como um drama moral, evolui para uma ficção-científica irrestrita e finaliza-se como um soberbo drama humano sobre vida e morte. E, neste meio, Kelly busca referência em todos os lugares. O casal de Norma (Cameron Diaz) e Arthur (James Marsden) é baseado em seus pais, com a mãe dele também tendo um pé aleijado por causa de um acidente no raio-x e com seu pai também tendo trabalho na NASA. É como se Kelly abrisse a caixinha das lembranças de sua infância e canalizado toda a imaginação que ele tinha direito de ter naquela época. Nisso, ele referencia gênios da ficção-científica ao compor sua história. De H.G. Wells à Arthur C. Clarke (cuja terceira lei chega a ser lida por um personagem), Kelly – repetindo o que fez em Southland Tales – espalha simbolismos e sutis menções ao longo da metragem que justificam muitas de suas idéias aparentemente loucas ou desconexas. A verdade é que existe uma grande textura e uma imensa densidade no que ele anseia contar. A terceira lei de Clarke lê “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magiaâ€, já prenunciando certas medidas adotas pelo roteirista. Também há a menção à Jean-Paul Satre na sala de aula de Norma – em particular, sua peça “Sem Saída†– trazendo a tona os temas de inferno e purgatório.

Todo esse tom referencial, simbólico e interessante de A Caixa nos desvia a atenção de certas falhas de Kelly na composição do roteiro. Sejam detalhes da trama ou aspectos de suas resoluções, certamente existe espaço para aperfeiçoamento. O que também ajuda a relevar tais falhas são os personagens de Norma e Arthur, bem compostos e também bem atuados. Diaz não faz nada excepcional, mas convence – ao passo que James Marsden surpreende com seu trágico personagem. Também há um forte Frank Langella, captando a essência do personagem. E são mesmo os personagens que, no fim das contas, ressoam. Apesar dos temas metafísicos e das viagens abundantes, é no forte drama moral e familiar que reside a força do filme. Para os mais envolvidos, pode ser até difícil não se emocionar (ou ser chocado) ao desfecho da película.

Elaborando no cinismo de O Dia em que a Terra Parou, A Caixa mergulha totalmente no clima de filme-B, assumindo uma atmosfera quase clássica em sua abordagem e na forma como retrata os aspectos sobrenaturais da trama. Méritos da belíssima fotografia de Steven Poster, cuja paleta forte e elegante não só casa perfeitamente com a reconstituição de época, mas destaca qualquer iluminação em cena – que por sua vez espelha a própria aura sobrenatural assumida pelo filme. O tom etéreo só vem a ser pontuado, porém, a partir da magnífica trilha sonora composta pelos integrantes da banda Arcade Fire. Em trilha que não deve em nada aos mais clássicos filmes do gênero, somos transportados para dentro do louco mundo de Richard Kelly. A viagem é prazerosa, divertida e emocionalmente devastadora. Para apreciar, basta abrir um pouco a mente e se deixar ser carregado pela inventividade (rara, e por isso tão especial). (Wally Soares)