Crítica sobre o filme "Homem Sério, Um":

Wally Soares
Homem Sério, Um Por Wally Soares
| Data: 27/05/2010
Em sua vasta – e versátil – filmografia, os irmãos Coen já retrataram temas diversos, expondo feridas polêmicas ou simplesmente lançando um olhar sobre a relatividade da inteligência humana. Até Um Homem Sério, porém, nunca haviam realizado um filme tão pessoal e tão humano. O humor negro já clássico da dupla marca presença do primeiro plano ao último, mas por trás das entrelinhas Um Homem Sério é um genial filme sobre a nossa natureza como seres humanos de estar sempre à procura de respostas para as inconveniências que nos atordoam dia após dia. Em seu personagem principal, a obra vê um homem arrasado por uma constante onda de azar; buscando colocar sua vida nos eixos, buscando um significado para o que ocorre em sua volta e, no caminho, tentando ser levado a sério.

A história gira em torno do professor de física Lawrence Gopnik (ou Larry, como é chamado por alguns). Judeu, religioso e conformado com a rotina enfadonha a que é submetido todo santo dia, Larry (Michael Sthulbarg) começa a enlouquecer quando o azar começa a persegui-lo. Seu irmão instável está hospedado em sua casa, sua mulher acaba de pedir o divórcio, seu filho anda tendo problemas na escola e um cobrador anda ligando para seu escritório pedindo a quitação de algo que ele nunca adquiriu. Entre outros incidentes e percalços. No meio deste furacão, Larry tenta manter a sanidade e começa a questionar sua fé e seus princípios.

O longa-metragem abre com um prelúdio curioso que já sugere o tom bem humorado que o roteiro resgatará nos próximos interessantíssimos cem minutos. A sequência, que se passa em outra época, foi definida pelos cineastas como um curta despretensioso sem qualquer significado mais elaborado. De fato, surge abstrato e funcionando melhor como aperitivo cômico para as sacadas mais intensas que viriam a seguir – todas devidamente engolidas por um humor extremamente negro. O roteiro da dupla é um deleite. A construção rica da narrativa fica em segundo plano para o verdadeiro primor da película: o personagem de Lawrence. Criatura imensamente complexa, Larry sintetiza o ser humano em seu estado mais desesperado e desesperançoso. Apesar do tema melancólico, tudo aqui é canalizado tendo em mente um subtexto bem humorado. E sempre funciona. Os Coens nunca forçam demais a comédia e nem esquivam do drama mais denso.

Larry é judeu e um professor de física, automaticamente representando dois extremos: a fé e a ciência. Apesar de distintas, ambas oferecem a ele mentiras. O roteiro o retrata no momento em que começa a colocar em cheque suas crenças. Larry começa a padecer diante de suas incertezas religiosas, abrindo espaço para um delicioso clima de existencialismo proposto pelos Coen. Também se vê em contradição com a natureza exata e elaborada da física que ensina na sala de aula. A sequência em que sonha estar resolvendo uma equação gigantesca que supostamente produziria uma resposta para sua existência é perfeita ao sintetizar essa mentalidade do personagem – e, generalizando, a própria natureza humana. O roteiro da obra é espetacularmente recheado de momentos simbólicos e nuances brilhantes. Na cena em que ele recusa pelo telefone – de três formas diferentes – um álbum chamado Abraxas, ele está simplesmente recusando Deus, já que Abraxas é um termo agnóstico usado para definir Sua existência. O desfecho, por sua vez, dúbio e vago, é perfeitamente explicado como uma alusão religiosa. Pressupondo que Larry representa aqui um típico Jó – homem bom a quem coisas terríveis ocorrem – não seria exagero enxergar no desfecho uma alegoria do evento bíblico que coloca Jó diante de um redemoinho, de onde Deus surge dizendo que não explicará as coisas ruins que aconteceram a ele.

Por mais rico que Larry possa ser no texto inspirado dos Coen, nada seria sem a performance consistente de Michael Stuhlbarg, simplesmente sensacional na composição da neurose do personagem – seu desespero, sua descrença, seu medo e sua postura sempre insegura. O elenco todo, em sua maior parte composto por nomes desconhecidos, é hábil ao trazer a devida autenticidade aos personagem e seus dramas. A parte técnica do longa-metragem também merece devido reconhecimento. O destaque aqui é a fotografia sempre interessante, com enquadramentos sugestivos e subjetivos. O mesmo vale para a detalhada direção de arte – impecável ao traduzir a cultura judaica – o figurino intrigante e a trilha sonora excepcional (tanto a original de Carter Burwell, quanto a incidental divertida).

Um Homem Sério surge, portanto, como uma obra imensamente significativa e complexa. Rica em suas observações humanas e eficiente no seu espírito cômico. É mais um acerto sólido dos Coen que provavelmente não receberá seu reconhecimento merecido graças à falta de ritmo da película e seus temas sempre subentendidos. Para quem se dispor a mergulhar a fundo na poesia elaborada pelos irmãos, certamente não será decepcionado. Um Homem Sério é Cinema maravilhoso. (Wally Soares)

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Os realizadores Ethan e Joel Coen estão em estado de graça cinematográfica nos últimos anos. Ou seria mais justo semioticamente dizer que o realizador (no singular) Ethan-Joel-Coen é um gênio do cinema atual, pois estes irmãos-cineasta formam, como os italianos Paolo e Vittorio Taviani, uma entidade fílmica única: são quatro mãos a serviço, ao que parece, de um espírito só. Um homem sério (A serious man; 2009) é certamente a mais complexa narrativa cinematográfica dos Coen e vai perseguindo o mesmo instinto de criatividade e insatisfação com as normas existentes como depuração absoluta em seus dois últimos trabalhos, Onde os fracos não têm vez (2007) e Queime depois de ler (2008); em Um homem sério eles avançam para o perigoso terreno da inteligência de filmar, revelada por um humor tão secreto quanto agudo, e surpreende que esta realização possa ter trânsito fora dos circuitos alternativos.

Utilizando uma montagem muitas vezes insípida em seu sistema de cortes, exacerbando em angulações repuxadas e esquisitas e adicionando reflexões ensaísticas que unem jocosos conceitos de Física com não menos sarcásticos (embora trágicos) questionamentos existenciais (o grande plano dos cálculos no quadro-negro em que a figura do protagonista, um professor de Física, se abre sobre a multidão de alunos para dizer do princípio da incerteza é impressionante), Um homem sério foge das maçantes obviedades do atual cinema americano habitualmente visto por aqui. Como ocorre em Aproximação (2002), do israelense Amos Gitai, há uma história-prólogo que, sem ter um encadeamento direto com o que depois se vai contar, funciona como um holofote ideológico para o filme. Em Um homem sério a estranheza e a dureza desta história são agressivamente delirantes; este prólogo passa-se em Cracóvia, na Polônia, e a língua das personagens é iídiche; o morro de demências que a narrativa do filme vai posteriormente erguer tem tudo a ver com a insipidez que se instala no prólogo. O universo judaico aparece ao longo de Um homem sério e os termos específicos deste universo e a complexidade das relações estabelecidas (inclusive bastante metafísicas), revocando de maneira muito forte (e bem mais do que em Aproximação) as intenções cruas e perversas do prólogo.

Os Coen constroem suas desesperançadas personagens à luz destes tempos sombrios que envolvem os Estados Unidos e o mundo: tudo pode ficar pior, está matematicamente comprovado no princípio da incerteza. De maneira muito mais provocativamente ignominiosa que Magnólia (1999), do também americano Paul Thomas Anderson, Um homem sério se encanta com o baixo astral de um grupo de criaturas. Há uma dimensão filosófica neste baixo astral que, creio, o cinema americano não chegou a atingir nesta primeira década do século. E, em matéria de irreverência perturbadora, talvez somente Quentin Tarantino com seu inédito À prova de morte (2007) tenha permitido a um filme americano estar por ali. (Eron Fagundes)