O TEXTO QUE SEGUE É DEDICADO A TUIO BECKER, QUE HÁ DEZ ANOS ME EMPRESTOU UMA CÓPIA EM VÍDEO COM A QUAL PUDE PELA PRIMEIRA VEZ ENTRAR EM CONTATO COM EUROPA 51.
Que fatos da vida do italiano Roberto Rossellini transformaram o estilo neo-realista dos anos 40, de que Roma, cidade aberta (1945) e Paisà (1946) são fitas essenciais, chegando ao cinema espiritual de Europa 51 (1952)? Em 1947 morreu um filho de Rossellini; o menino tinha nove anos de idade. No final da década de 40 surgiu na vida de Rossellini a atriz sueca Ingrid Bergman, que abandonou Hollywood porque se apaixonara pelos dois filmes neo-realistas acima citados e veio a apaixonar-se pelo homem-artista Rossellini depois (ou antes, ou durante) da primeira filmagem sob o cineasta italiano. A vida influencia a arte, e Rossellini, sem perder sua essência (ou suas essências), altera um pouco o foco de seu cinema.
Europa 51 é um dos eventos da história do cinema e um ponto crucial desta transformação rosselliniana. É uma das mais angustiantes narrativas fílmicas já feitas e um dos resultados mais elevados que um artista italiano poderia dar do universo do pós-guerra na Europa. O suicídio do filho de Irene, o pequeno e transtornado Michel, ocorrido depois de vinte e cinco minutos de andamento saltitante de imagens do mundo burguês a que as personagens pertencem, está colocado de um ângulo tão visível e autêntico que o sofrimento do protagonista evoca o sofrimento de Rossellini ao perder seu filho, ao menos para quem tem esta informação. O cineasta é particularmente hábil em impor, com agudez cinematográfica, os diversos climas em que se estrutura a narrativa: no primeiro bloco de ações, a vida azafamada de Irene, a materialidade de sua relação com o esposo e o filho e os amigos da casa e os criados são montadas em planos ágeis, azafamados; quando Irene, aturdida com o suicídio do filho, afunda-se numa tensa relação com pessoas do povo, fazendo aflorar suas questões transcendentais, o estilo narrativo de Rossellini, lento, por vezes, desesperado em seu desenho do quadro, rigoroso nas relações entre o cenário e o gesto do ator, vai antecipar o cinema da alma do também italiano Michelangelo Antonioni, curiosamente um dos roteiristas de Um piloto retorna (1942), um filme da fase fascista de Rossellini; internada numa instituição para dementes, Irene mergulha num círculo de seres estranhos que a câmara de Rossellini capta com um sentido do burlesco que Federico Fellini, outra das crias italianas do mestre (Fellini foi um dos roteiristas de Paisà), passaria a exasperar a partir de Oito e meio (1963).
Europa 51 é certamente uma das confluências do que significaram na vida de Rossellini a morte de seu filho e o casamento com Ingrid Bergman. Despojada de sua luminosidade hollywoodiana, Ingrid é no filme de Rossellini tão-somente um frágil ser humano insatisfeito com os rumos de sua vida; auxiliado pelo grande talento de sua mulher-atriz, Rossellini faz de Europa 51 uma radiografia dos caminhos da consciência moral no século XX. Partindo do suicídio duma criança, Rossellini mostra o despanhadeiro ético da Europa do pós-guerra; a certa altura, um diálogo, tratando do suicídio do garoto, lembra que os meninos europeus dos anos 40 e 50 nascem sob o signo das bombas, e isto vai determinar seu comportamento.
A imagem final de Ingrid Bergman, olhando de uma janela gradeada para as pessoas que parecem reverenciá-la como a uma santa (na verdade, a voz de Giulietta Masina, uma das personagens metidas naquela turba de espantados populares, sai do fundo do plano murmurando: “É uma santa!”), é uma das mais transcendentais da história do cinema. A capacidade de atravessar a superfície do celulóide e chegar ao coração de tudo, está ali, neste enquadramento final, como uma centelha de gênio.
Pode-se dizer que Ingrid Bergman vai compondo uma personagem que pouco a pouco funde humanidade e santidade; o que Ingrid gostaria de ter feito de sua Joana d’Arc hollywoodiana (ela chegou a fazer também uma experimental Joana d’Arc para Rossellini), ela o faz com Irene graças aos métodos estilísticos de Rossellini. Se Ingrid transformou o cinema de Rossellini, criando em seu seio um clima que no primeiro momento afastou os analistas mais ligados ao purismo estético e político do neo-realismo, o cineasta mudou a intérprete, o que tornou a concorrida estrela de Hollywood num veneno de bilheteria que navegava desorientada em filmes que, apesar de sua transparência, eram considerados difíceis por sua linguagem e ambíguas posições morais (uma ambigüidade adrede e cheia de sua própria lógica).
Libelo contra a desumanidade social, Europa 51 mostra como a sociedade desmonta as personalidades de gênio que a põem em risco. Não sobra ninguém: a família, a ciência, a religião (um padre surge para consolar as internas doentes, assim como havia um padre, em Stromboli, terra de Deus, 1949, para dar seus conselhos católicos à inquieta figura feminina vivida por Ingrid Bergman) vêem as pessoas como estereótipos e as destroem. É bem isto: Europa 51 é um filme sobre a destruição operada depois da catástrofe, depois das duas guerras mundiais e do suicídio de Michel. (Eron Fagundes)