Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 04/12/2009
Vagas estrelas da ursa (Vaghe stelle dell’orsa; 1965), filme rodado pelo italiano Luchino Visconti a partir de uns versos profundamente desorientadores de Leopardi, é uma narrativa voluptuosa em seu refinamento. A precisa marcação dos cenários burgueses, as tensões metafÃsicas dos diálogos, os quadros e os movimentos de câmara que simulam um rigor operÃstico, as súbitas manipulações das lentes do fotógrafo Armando Nannuzzi são elementos que, nas mãos inspiradÃssimas de Visconti, topam acordes cinematográficos únicos. Refazendo o classicismo de filmar com transtornos revolucionários (o espectador nunca deverá esquecer que ele herda do francês Jean Renoir e do patrÃcio peninsular Roberto Rossellini, ambos dialogando exaltadamente nesta realização de 1965), Visconti executa em Vagas estrelas da ursa o andamento introspectivo que antes ele buscara em Sedução da carne (1954) e Noites brancas (1957); nestas três obras de Visconti a estética da sexualidade cinematográfica (aludo à carne da imagem) exubera, beirando um paroxismo visual que só poderia ser concebido por uma bicha marxista de origem tão aristocrática quanto Visconti, alguém tão cheio de “toques†ao filmar uma cena.
Mais do que em todas as demais obras-primas do grande diretor, é diante do esplendor anacrônico de Vagas estrelas da ursa, escorregadio e decadentista, que o observador depara um tipo de cinema que pode não fazer mais sentido para o agitado público deste princÃpio de milênio. São poucos os sobreviventes desta nobreza de filmar tão etérea quanto encurvada em seu intelectualismo e senso poético; talvez o francês Eric Rohmer, talvez o português Manoel de Oliveira sejam os que mais se aproximam deste rigor intelectual e moral de filmar que teve em Visconti um de seus apogeus e hoje parece não interessar a mais ninguém. Não surpreende que Vagas estrelas da ursa, a despeito de sua grande força como cinema, seja um dos trabalhos de Visconti menos aludidos; o filme parece uma conversação à margem dos grandes temas viscontianos da decadência da aristocracia, analisados soberbamente em O leopardo (1963) e Ludwig, a paixão de um rei (1973), mas isto é somente aparência, pois Visconti mergulha, de maneira secreta e trágica, numa história de amor incestuoso (o caso dos irmãos amantes desde a infância) que é o próprio sÃmbolo da decadência duma classe. Um pouco à maneira de O criado (1963), do norte-americano Joseph Losey, mas com uma carga de homoerotismo que é mais própria do ser de Visconti, Vagas estrelas da ursa propõe um confronto de encenações que vai dirigir-se para um clÃmax interpretativo onde a genialidade do diretor é exposta à profundidade dramática dos atores.
Claudia Cardinale e Jean Sorel, sob as ordens de Visconti, têm rendimentos extraordinários. Visconti filma o sexo dos irmãos com uma densidade de deslumbramento fÃsico do cinema; não é o onirismo entre o vulgar e o circense do também italiano Federico Fellini, nem uma entrega à brutalidade de ordem sexual de outro italiano, Pier Paolo Pasolini. É um refinamento à parte, mas os bons modos da superfÃcie são desmanchados pelos atrevimentos de um cineasta para lá de avançado. Fugindo à habitual nostalgia romântica dos retornos à infância por meio de uma viagem ao mesmo tempo geográfica e mnemônica, Visconti abre o desespero de suas personagens, sem as facilidades oferecidas pelo gênero a outros realizadores italianos de prestÃgio, como o Francesco Rosi de Três irmãos (1981) e o Giuseppe Tornatore de Cinema Paradiso (1988), outras duas viagens para o perigoso paÃs da infância. Sem perder o refinamento, Visconti não foge de olhar a briga do marido e do irmão incestuoso diante da presença atordoada da mulher que volta à terra natal e dá com as ruÃnas de seu passado; as ruÃnas que em cena anterior o marido dela e o irmão viram passeando pela pequena Volterra são somente os signos das ruÃnas interiores de suas lembranças e preparam o campo para o enfrentamento das duas personagens.
Ainda hoje uma narrativa capaz de abalar o assistente pelo coeficiente de deslumbramento psicológico dos embates, Vagas estrelas da ursa foi um dos escândalos de seu tempo ao tratar o tabu do incesto com absoluto despudor. Porém, com aguda plasticidade poética. (Eron Fagundes)