Crítica sobre o filme "Anticristo":

Rubens Ewald Filho
Anticristo Por Rubens Ewald Filho
| Data: 17/12/2009

André Kleinert, em seu artigo “Tarantino, o mais sensorial dos cineastas”, relata, no preciso primeiro parágrafo de seu texto, uma experiência estética que teve aos onze anos de idade: o maravilhamento com uma história-em-quadrinhos feita de violência gráfica e temática. E se questiona: se todo o drama épico daquela personagem dos quadrinhos não guardava relações com a realidade daquele menino de onze anos, donde vinha o fascínio? “Ela não refletia a minha vida, não havendo pontos de identificação com o que eu vivia.” André conclui pelo impacto sensorial da obra de arte. A pergunta que me faço, olhando de perto as argúcias da argumentação de André, é a seguinte: se uma peça artística me causa impacto, será que ela não tem nada que ver com minha realidade circunstante? E que é mesmo a realidade? Será que a realidade daquele menino de onze anos que devorava a personagem do Demolidor não era algo muito maior do que parecia e que o surgimento de uma obsessão estética explicaria melhor do que suas ações cotidianas?

Anticristo (Antichrist; 2009), por exemplo, o mais novo filme do realizador dinamarquês Lars von Trier. Sua encenação é irreal, é metafórica, talvez pouco tenha que ver com as vivências físicas de Von Trier. Num certo sentido ele pode ser tão escapista e mistificador quanto uma aventura do norte-americano Steven Spielberg (invertendo-se um pouco o sentido, as aventuras escapistas de Spielberg têm sua dose de realidade para quem as estima porque elas são reflexos dos desejos interiores de seus admiradores). Assim como Anticristo é o espelho cinematográfico das perturbações demoníacas de Von Trier. Raciocinando de uma maneira oposta à do brilho argumentativo de André, pode-se dizer que toda obra de arte é um espelho do real, como certa vez quis o romancista francês Stendhal, não naquele sentido obtuso e engessadamente comprometido como se quis ver o cinema num determinado momento dos anos 60 e 70 do século passado, nem atendo-se a uma leitura medíocre do realismo cinematográfico, porém como uma imagem contraponto ao real, a beleza do cinema surge com este olhar que sai duma coisa para outra, da imagem na tela para a realidade em torno para dizer ao cinéfilo que o cinema é mais bonito que a realidade ou que a realidade só é compreensível porque há o cinema e sua reorganização peculiar da realidade (realidade= ações verdadeiras; ações verdadeiras= todos os gestos, inclusive os que só existem na imaginação).

Segundo se leu, Anticristo tem a ver com um período de depressão do indivíduo Von Trier. E isto é bem palpável ao longo do filme. A história deprime, constrange, incomoda. A realidade do espectador pode ter poucas relações com aquilo que se passa em Anticristo. Mas o poder cinematográfico de Von Trier é tão grande (algo aparentado com aquilo que Kleinert chama “impacto sensorial”) que, durante a projeção, a realidade do observador é aquela mesmo que está em Anticristo. Que demônio é este? Ou será que havia no espectador certas realidades infernais que a burocracia da vida abafa e que somente um artista genial como Von Trier pode desencavar?

A violência e o sexo são usados com despudor pelo cineasta dinamarquês em seu filme. Numa determinada cena, a mulher mutila sua vagina, fazendo-se sangrar, e grita. Noutra imagem perturbadora, a mulher masturba o homem desfalecido a quem ela agrediu e o rijo pênis vai ejacular sangue; ou será que o esperma é de sangue, ou mais diretamente esperma é sangue? Na base da relação do casal sem nome, vivido de maneira tão perplexa quanto escrachada por Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, uma visão da culpa observada com uma lente pagã, apocalipticamente pós-cristianismo; a culpa é a morte do filho pequeno que sofreu uma queda enquanto o casal transava; para aplacar a culpa, o homem e a mulher se impõem um rito de dor física tão forte que parece irreal mas serve para recompor uma realidade-outra de sua dor moral; onde está a realidade desta dor tão forte que é irreal? Dor, desespero, luto, o reino do caos, os irmãos mendigos, tudo signos. E signo é também aquele final em que o homem vê vir contra si uma multidão de fêmeas tão ferozes quanto insinuantes e que na verdade se dirigem à sua própria origem, ao útero matriarcal.

Pode-se aplicar ao estágio atingido por Von Trier em Anticristo a assertiva que André Kleinert trouxe para sua análise de À prova de morte (2007), do norte-americano Quentin Tarantino: Von Trier está-se lixando para os atuais cânones cinematográficos, visando a chegar à sua dimensão pessoal de filmar. Com uma dedicatória final ao diretor de cinema russo Andrei Tarkovsky, de quem o cinema de Von Trier não herda praticamente nada, o realizador dinamarquês busca na história do cinema uma porta de pista para as intenções de seu filme, uma narrativa de desesperado niilismo. (Eron Fagundes)

.

Não consigo levar a sério o trabalho do diretor Lars Von Trier, que alterna fitas polêmicas e interessantes como Dogville, e foi um dos criadores do Dogma (que era apenas um golpe publicitário), mas fez filmes ruins e bobos, como Os Idiotas, O Grande Chefe e mesmo Dançando no Escuro. Por isso, o escândalo provocado por este filme no ‘Festival de Cannes‘ deste ano deixava dúvidas.

Para se ter idéia da repercussão em Cannes, este filme teve um anti-prêmio votado pelo júri ecumênico, que normalmente só encoraja filmes que promovem visões espirituais e humanistas. Aqui, ao contrário, eles destacaram sua visão misógina! Promovido no trailer dos cinemas como um filme de terror normal (a revista ‘Época’ o chamou de terror-cabeça), na verdade é um filme difícil, complexo, filosófico, aparentemente com muito a dever à obra homônima de Nietzche (de quem, curiosamente, o diretor fez uma biografia de sua juventude). Embora tenha sangue, algumas cenas mais fortes (violência contra animais, um detalhe obviamente ‘fake’ de sexo explícito), desta vez parece realmente angustiado, trágico de verdade. Segundo o diretor ele foi concebido durante uma depressão que sofreu, e a falta de esperança não afetou seu senso estético.  

O filme é dividido em quatro capítulos: ‘Tristeza’, ‘Dor’ (‘O Caos Reina’); ‘Desespero’ (‘Gynocidio’); ‘Os Três Mendigos’, além de prólogo e epílogo, todos ilustrados por obras do artista abstrato dinamarquês Per Kirkeby. Desde a primeira imagem impressiona, ao mostrar um casal fazendo sexo, Dafoe e Charlotte, com muita intensidade. Só que a mulher, embora perceba tudo, deixa de socorrer seu filho, ainda bebê, que está caindo de uma janela. Sua morte deflagra nela um processo de culpa torturante e autodestrutiva. O marido, que é psicólogo, tenta socorrê-la, mas o processo dela acaba envolvendo também pesquisas que ela fazia, sobre mulheres da idade média que foram perseguidas e mortas, acusadas falsamente de bruxaria. E as coisas se misturam quando ela vai com o marido para uma floresta, onde se refugiam numa cabana e ele tenta ajudá-la. Mas tudo parece em vão, enquanto o círculo de vida e morte da natureza parece interferir na trajetória deles.

Prato cheio para discussões e polêmicas psiquiátricas e psicológicas, ao contrário de muitos outros filmes, este parece denso e sincero. Incita uma segunda visão e um papo na saída da sala. Com a certeza de que não é David Lynch e suas digressões.

Tenho que confessar que a figura de Charlotte me impressiona mal, como uma das mulheres menos atraentes e desprovidas de qualidades do cinema. Mas ela ganhou o prêmio de atriz em Cannes, pela coragem e entrega total ao personagem, com um papel mais chamativo e forte do que o igualmente convincente Dafoe. Há pelo menos duas sequências no filme que são ousadas e chocantes para uns (uma mutilação feminina e um orgasmo de sangue), ou perturbadoras e gratuitas para outros (muitos críticos, em Cannes, reagiram com violência e horror ao filme, como se ficassem pessoalmente ofendidos). Outros podem ficar mesmo fascinados com sua desesperança, sua bizarra poesia, suas citações bíblicas (o diretor é cristão e faz paralelos óbvios com o Éden, a expulsão do Paraíso, o Desespero dela e o Orgulho dele, dois crimes graves contra Deus; depois, na cabana, a voz do marido seria como a voz do diabo, que irão concluir em imagens alegóricas, como se fosse uma pintura de Bosch ou semelhante). Não entrem por engano - pela busca do escândalo - só conscientes de que irão enfrentar um filme angustiante. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 10 de setembro de 2009)