Não há duvida que Budapest foi o romance/novela mais bem sucedido de Chico Buarque de Holanda, ainda que igualmente imemorável (será problema meu que depois de tê-lo terminado o li novamente inteiro,achando que algo tinha me escapado!) . Mas simpático e um pouco frágil. O que fica mais claro ao ser transposto para o cinema numa bela produção de Rita Buzzar (a mesma de Olga) que também fez o roteiro chamando para a direção o excepcional fotografo Walter Carvalho (que também tem dirigido como em Cazuza - O Tempo Não Para!). Eles tem uma grande sacada quando colocam logo no começo a frase: para mim “Budapest†(a capital da Hungria) é dourada. E dali em diante, a cidade é capturada de forma belÃssima, sem cair em cartão postal, num excelente trabalho de imagens. Sendo que a grande seqüência do filme - lembrando sem duvida o filme de Angelopoulos, O Olhar de Ulisses - é quando passa uma barcaça descendo o rio trazendo uma estátua enorme do lÃder comunista Lênin, já em pedaços (o que já diz tudo sobre o comunismo caÃdo). Uma cena bem aproveitada que só peca no excesso (não era preciso aquele plano final de cabeça para baixo).
O problema com a adaptação é que não consegue encontrar um tom certo (ou terá sido a direção?). Não se pode levar a historia muito a sério, sobre um ghost writer infeliz, que primeiro concorda em assinar uma biografia para depois quando ela faz sucesso, ficar reclamando e querendo crédito. Na verdade, isso é banal, muito mais comum do que parece e só funcionaria se o personagem fosse mais simpático, do que jeito que esta o protagonista José Costa (Leonardo Medeiros) é um chato, que é grosso com a mulher apresentadora de teve (uma irregular Giovanna Antonelli que podia exigir ser melhor fotografada nas cenas de nudez), se comporta de maneira estúpida com freqüência (como aquela bebedeira no bar em Budapest que quase termina mal). Outra coisa que incomoda, o excesso de cenas de sexo desnecessárias ou redundantes com jeito de antiga pornô-chanchada.
Tampouco se redime quando na Hungria começa um romance com uma mulher local (feita por Gabriela Hamori, que não me deixou impressão especial).Talvez seja um problema de escalação, para personagem assim teria que ter um ator com empatia de um Paulo José jovem ou Selton Mello, enquanto Leonardo Medeiros fica mais expressivo quando passa a falar húngaro. Também não funciona quando o filme embarca numa meta linguagem ao final, com uma aparição de Chico.
Apesar de tudo, por sua dimensão, qualidade visual e mesmo originalidade (não é todo dia que se tem um filme brasileiro feito em co-produção com a Hungria) merece ser conferido. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 5 de junho de 2009)
.O cinema brasileiro atual tem namorado a ficção discutida e discutÃvel de Chico Buarque de Holanda, compositor musical consagrado e escritor que divide as opiniões. Budapeste (2009), que o cineasta Walter Carvalho extraiu de um romance de 2003, é a mais bem-sucedida das adaptações que fizeram do universo literário de Chico para o cinema, o que não significa que a narrativa seja plenamente realizada, muito longe disto, tudo é muito difuso e mesmo confuso em cena, mas sobra um encanto misterioso que emana das belas e elaboradas imagens que Walter e seu fotógrafo Lula Carvalho extraem dos cenários brasileiros (mais descontraÃdos) e dos cenários húngaros (mais cinzentos, brumosos, onde se rodam algumas sequências sob a égide perversa do expressionismo alemão). Walter fala de um filme húngaro obscuro dos anos 30 como uma das citações de Budapeste; mas há duas sombras de influência que me parecem persistentes sobre as imagens deste filme brasileiro: Um olhar a cada dia (1995), do grego Theo Angelopoulos, referido na cena em que uma estátua de Lênin é transportada Danúbio afora; e A dupla vida de Verônica (1991), do polonês Kryzstof Kieslowski, pois, como a personagem central do filme polonês, o protagonista de Walter tem duas vidas, uma no Brasil, outra na Hungria, em ambas tem mulher e filho e é escritor, e assim os espelhos se acavalam na trama, meio aos atropelos é verdade.
Para os brasileiros o húngaro se aparenta a uma lÃngua áspera, truncada, de audição complicada. Uma lÃngua, como escreveu Chico jocosamente, que o diabo respeita. Se o diabo respeita, é porque a lÃngua deve ser dos diabos. Estas assertivas do romance de Chico Carvalho transporta para o filme. No começo do romance o narrador de Chico se diz incomodado com os que debocham dos iniciantes numa lÃngua estrangeira. A frase que direciona a zombaria é lida pelo ator Leonardo Medeiros (que interpreta José Costa, o protagonista) no filme de maneira recitativa, como nos antigos filmes do francês Alain Resnais. Talvez em Budapeste Chico tenha extravasado seus longos anos de exÃlio, onde foi obrigado a balbuciar em lÃnguas estrangeiras. “Aà estou chegando quase... havia provavelmente algum problema com a palavra quase.†Não admira que o húngaro seja tido como uma lÃngua para ser venerada pelo diabo.
Chico Buarque, sorridente, vai aparecer pedindo autógrafo ao personagem-autor que ele próprio criou e agora ali diante dele adquire o fÃsico de Leonardo Medeiros. Isto pode remeter aos procedimentos irônicos do cineasta inglês Alfred Hitchcock, que sempre se punha brevemente em cena em seus filmes. Chico não é o diretor do filme, mas é um pouco seu autor, e acaba invadindo-o também como personagem que sorri ironicamente da criatura que antes construÃra em livro.
Sintaticamente, o filme simula o livro. Uma frase repetida duas vezes em cena: “E a mulher amada, de quem eu sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa.†Esta articulação de conjunções e preposições que Chico aduz palidamente em seus textos é realçada em deslizantes movimentos de câmara, certos sistemas de corte e uma montagem mnemônica no filme de Walter: ele melhora bastante o texto sinuosamente inconsistente de Chico. Se Budapeste, o filme, tem suas irregularidades e pontos amorfos, está muito acima da média das baboseiras cinematográficas que habitualmente despejam nos cinemas das cidades brasileiras.
Diante do namoro do cinema pela ficção de Chico, espera-se para daqui a alguns anos que alguém se abalance a transformar em filme seu texto mais forte, o romance Leite derramado (2009). (Eron Fagundes)