Agora tudo muda de figura, e as pessoas vão começar a reclamar, dizendo que o filme não é tudo isso, que não tem cara do Oscar®, e assim por diante. Nada mais normal. Até agora, esta modesta produção inglesa, rodada na Ãndia, era um filminho que, como Davi, enfrentava os gigantes de Hollywood - como Benjamin Button, que custou três vezes mais do que ele. Agora, depois de levar oito Oscar® (filme, direção, roteiro, fotografia, montagem, trilha musical, canção e som, ou seja, todos os principais menos interpretação), virou fenômeno, e chegou o momento de ter o ‘backlash’ a onda contra. De qualquer forma, vocês sabem que este era meu filme favorito do Oscar® 2009.
Um filme (relativamente) pequeno da ‘Fox Searchlight’ (o Miss Sunshine deste ano). Uma produção britânica, toda rodada na Ãndia, que nos dá uma visão exuberante, moderna, de emoções fortes e contrastantes, e que era o único dos concorrentes, até agora ao menos, que não é depressivo ou trágico. Um filme bem de acordo com a ‘Era Obama’, em que os americanos enfrentam o futuro com apreensão, mas com esperança, acreditando que as coisas podem virar e melhorar. A fita tem essa mensagem positiva, e isso conta muito neste momento, é a hora certa. Quem dirige é Danny Boyle, que chegou a ser indicado pelo roteiro do filme que o revelou (Trainspotting), em 1996. Mas ele não estava de passagem, e demonstrou isso numa carreira com altos e baixos, mas sempre um domÃnio técnico notável. Boyle experimentou Hollywood, e viu que não era sua praia (Por uma Vida Menos Ordinária), fez uma digna adaptação de A Praia (mas foi engolido pelo fenômeno Di Caprio), deu a volta por cima com o terror ExtermÃnio (2002), o delicioso CaÃdos do Céu (2004), e o bom Sunshine - Alerta Solar (2007). Mais versátil do que Guy Ritchie, tem certa semelhança com ele no gosto pela edição rápida, muitos planos em ritmo de music vÃdeo. Mas não esquece do conteúdo, nem de um roteiro muito preciso, o que fica claro aqui.
Esta é a história (fictÃcia) de um adolescente pobre indiano, que concorre a um programa tipo “Jogo do Milhãoâ€, do SBT. Ele acerta tanto, que a própria produção do programa o entrega para a polÃcia, suspeitando de fraude. Ele começa sendo torturado (aliás, o plano inicial é ótimo, pondo em formato de múltiplas escolhas o que ele estaria fazendo ali, no programa), até ir confessando a relação das respostas com sua vida, atormentada e muito pobre.
Tem um pouco de Salaam Bombay, de Cidade de Deus, de tudo que se ouve da Ãndia antiga, em contraste com a moderna e rica da Mumbai (ex-Bombaim) de atualmente. Só que os flashbacks não são tradicionais, a vida dele vai se desenrolando, mostrando como foi muito pobre, como a mãe foi morta por ser mulçumana, como foi parar nas mãos de um explorador de crianças, como ele e o irmão protegeram uma menina órfã, e se intitularam os Três Mosqueteiros.
Não há duvida que algumas soluções são rocambolescas, ou melodramáticas, ou mesmo exageradas. Mas é, obviamente, um conto de fadas assumido. No contexto do filme funcionam lindamente, até porque o filme não deixa de respeitar as convenções do cinema hindi (interrompe o beijo na boca, conclui com um grande número musical). O bacana é que Boyle sabe dirigir atores (quase todos desconhecidos e amadores), e capturar a atenção do espectador. Fiquei cativo dos personagens, das cenas, da narrativa, do visual, me envolvi com a história, e por várias vezes vibrei. Foi um prazer ver o filme e, com alegria, vou assisti-lo novamente.
Tomara todo filme do Oscar® fosse assim. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 2 de março de 2009)
. O último grande vencedor do Oscar®, Quem Quer Ser um Milionário é um filme dos mais improváveis. E, talvez por isso, ele seja tão surpreendente. O versátil Danny Boyle (Sunshine – Alerta Solar), aventureiro de diversos gêneros distintos, é um dos motivos pelos quais o filme é tão preciso em seu efeito arrasador na audiência. Em total domÃnio de sua técnica, Boyle pega uma história simples e piegas e a transforma num tour de force cinematográfico poderoso e completamente irresistÃvel. E, ao retratar um conto de superação dos mais contagiantes, traz consigo um sentimento afetivo que anda em falta no cinema recente pessimista. Da violenta cena inicial até a contagiante final, o filme te entorpece de uma maneira maravilhosamente idÃlica, levando seus espÃritos conforme testemunhamos a trilha de um personagem denso num mundo cruelmente real. E é um espetáculo o caminho que Boyle pavimenta. Ousado e nunca conformado, ele e sua equipe técnica impecável traduzem cada palavra do excelente roteiro de Simon Beaufoy (A Vida Num Só Dia) numa vertigem sensacional que não só entretém, mas deslumbra. E vertigem é o que não falta aqui. Armado com uma brilhante fotografia e uma edição genial, o filme nunca perde o ritmo e te mantém constantemente acesso à s implicações da história, sejam estas quais forem. O roteiro é construÃdo com precisão diante das complexidades das passagens do tempo, idas e vindas e flashbacks essenciais. Beaufoy faz com que as constantes jogadas pelo tempo não cansem, cria diálogos crÃveis e faz com que o tom de “fábula†se transforme em algo realista até demais, trazendo com isso um clima de emoção irrepreensÃvel. E a plausibilidade aqui era necessária para a completa função dos temas regidos. Mas Beaufoy acerta e Boyle nunca condensa a esperteza da estruturação do script. Pelo contrário, ele apenas a fortalece, ao mergulhar a audiência num mundo habilmente construÃdo e recheado da mais perfeita dramaticidade. O fervor do drama une-se então à força do suspense, ao descompromisso do humor e à agilidade do ritmo para criar um filme do qual você teme fechar os olhos e perder um mÃnimo detalhe de toda sua fantástica estrutura. Ao lado de sensacionais aspectos como direção, roteiro, fotografia e edição, o filme ainda almeja uma trilha sonora completamente carregada de estilo e oscilação. Alias, talvez o que faça o filme brilhar tanto não seja nem tanto as particularidades destes elementos, mas sim, a forma extraordinária com a qual todos se unem tão bem e em completa sincronia poética. E o filme de Boyle é completamente poético em seus fundamentos densamente dramáticos de esperança em meio à perdição. Retratando Mumbai da forma devastadora como deve ser em sua miséria e violência, mas capturando seu espÃrito de forma sincera, ele eleva seu filme do mero lugar comum ao entregar à história identidade e audácia narrativa. Suas imagens, muitas vezes, falam por si só e vencem por completo toda e qualquer admiração. O filme funciona como uma droga. Um entorpecente forte que age sob sua pele como os melhores filmes conseguem. Quem Quer Ser um Milionário não tem comentário profundos sobre o psicológico humano ou em nenhum momento almeja pique intelectual. Carregado pela simplicidade de seus personagens e suas próprias singelas ambições, ele te leva oscilando numa épica narrativa que te enche da mais contundente emoção. E, ás vezes, isso é mais do que o suficiente. Contando ainda com um elenco hábil de nomes desconhecidos, os atores sempre verossÃmeis fazem um trabalho exemplar em trazer o espectador para mais de perto da trama e de seus próprios personagens, que ganham humanidade importante (destaque especial merece ir à Dev Patel, estupendo no papel principal). Por isso, não é tão surpreendente quando você se vê pego com um largo sorriso no rosto na última cena do filme, que se segue de um clÃmax dos mais emocionalmente tensos. E também não é surpreendente que tal sorriso continue estampando seu rosto bem depois do término da sessão. Isso tudo é justificado pelo poder irrefutável com o qual o filme age sobre você. Fábula ou não, a história te vence e demarca um sentimento de otimismo e esperança cada vez mais necessário. Além disso, marca de vez o inÃcio da esperançosa era Obama nos Estados Unidos, talvez justificando tamanho o sucesso improvável do filme nas terras gringas que, com apenas $15 milhões de orçamento, ultrapassou a marca dos $100 milhões apenas nos EUA e viria mais tarde a derrotar grandes produções para vencer nada menos que oito Oscar® da Academia. Com isso, o filme substitui o pessimismo deixado por Onde os Fracos Não Tem Vez há um ano e celebra, com unhas e dentes, o poder da força humana e o valor da fé. Piegas? Pode ser. Mas ainda assim, maravilhosamente refrescante. Nada como ser varrido pelos seus pés e estimulado por uma obra de arte tão valiosa. (Wally Soares – confira o blog Cine Vita) .O que move um homem a seus erros? O investigador-torturador policial de Quem quer ser um milionário? (Slumdog millionaire; 2008), produção rodada na Ãndia pelo inglês Danny Boyle, responde: o dinheiro e a mulher estão por trás de nossos maiores erros. Muitas vezes pensam que um indivÃduo está interessado numa mulher e o que ele vislumbra é o dinheiro dela. Outras vezes pensam que ele busca dinheiro, mas o que movimenta sua vida é a atenção da mulher amada. A situação desta última frase é posta com toda a excentricidade de filmar e os desabusados exageros e melodramas e pieguices por Boyle em seu novo filme, o mais conversado pelo público e pela crÃtica (e no caso a conversa excessiva mais prejudica a apreciação do que a ilumina) de seus trabalhos desde Trainspotting (1996).
Quem quer ser um milionário? tem suas imperfeições, mas as usa com um sarcasmo cinematográfico que o ano, até agora, em Porto Alegre, ainda não foi capaz de apresentar. O maneirismo britânico de Boyle, tornando muitas vezes artificiosa a relação entre a forma fÃlmica e a crua realidade a que ela se refere (a montagem altissonante contrastando com a miséria das personagens), não prejudica a fruição final do espectador, pois a narrativa se preocupa mais com os sÃmbolos de sua parábola do que em aprofundar seus temas ou criaturas. Os aspectos pleonásticos da realização e as facilidades de suas tensões e conclusões finais são expostas tão em vÃsceras por Boyle que o espectador honesto se questionará, como o público e o apresentador do programa televisivo do filme: é uma trapaça mal-intencionada ou o cara está blefando inteligentemente com nossas percepções?
Embora atinja o público comum, por certos coeficientes melodramáticos ou exuberâncias visuais e musicais óbvias, a estrutura de Quem quer ser um milionário? tem uma linguagem fragmentária um tanto quanto divergente do padrão. Enquanto um plano da narrativa se concentra nas perguntas e respostas do programa televisivo, outro plano se insere mostrando como o protagonista é torturado após o programa para confessar uma trapaça e neste plano se insere ainda um outro, as lembranças da vida do protagonista que explicariam incrivelmente em seu cotidiano como topara com as respostas que o levariam aos milhões. Boyle é hábil e criativo em cruzar os três planos.
Houve quem comparasse o filme de Boyle com Cidade de Deus (2002), do brasileiro Fernando Meirelles. E os breves segundos duma galinha correndo no filme de Boyle incrementou a comparação com aquele trêfego inÃcio do filme de Meirelles. Ocorre que a realidade estética e humana de Quem quer ser um milionário? está numa galáxia muito diversa daquela de Cidade de Deus. Não nego que Boyle possa ter usado superficialmente certos elementos que viu no filme de Meirelles. Mas as preocupações, formais e morais, de Boyle são bem outras: mesmo com seu formato-padrão, em Cidade de Deus a miséria é o centro formal, já a partir do romance de Paulo Lins, enquanto em Quem quer ser um milionário?, extraÃdo dum livro de Vikas Swarup, a pobreza do protagonista é edulcorada pelas luzes e pelo sentimentalismo usados pelo britânico Boyle. (Eron Fagundes)