Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 16/05/2009
Toda a sutileza e a profundidade de filmar do cineasta norte-americano Donald Siegel pode ser topada em Os assassinos (The killers; 1964). Trata-se de uma das duas versões cinematográficas da história do ficcionista americano Ernest Hemmingway. A outra versão foi filmada em 1946 por Robert Siodmak e tinha à frente do elenco o sinuoso e introspectivo Burt Lancaster e a bela e enigmaticamente esquiva Ava Gardner. O elenco é um também um dos caprichos de Siegel em sua versão para a fugidia história de Hemmingway: Lee Marvin, um dos durões mais caracterÃsticos do cinema americano, é um dos matadores profissionais da trama; John Cassavetes, o perfeccionista intérprete de O bebê de Rosemary (1968), do polonês Roman Polanski, e o cineasta prodigioso de Uma mulher sob influência (1974), é a vÃtima assassinada no inÃcio do filme e cuja vida é repassada na narrativa em flashbacks a partir dos depoimentos de algumas testemunhas de seus feitos, cria-se nos flashbacks um articulado encadeamento em que um depoimento complementa o anterior na confecção do retrato da personagem; Angie Dickinson, que interpretou para o cineasta americano Brian de Palma uma das melhores cenas que De Palma filmou em Vestida para matar (1980), dentro dum museu, é a mulher fatal onde sensualidade, paixão, traição e volubilidade parecem ser a mesma coisa.
Nunca li o texto de Hemmingway e não saberia dizer nada das aproximações e as dissonâncias dos filmes com a obra literária. O que se sabe, vendo os dois filmes, é que, apesar da mesma base de enredo (alguém é morto no inÃcio do filme por matadores contratados e não esboça nenhuma reação, e os flashbacks posteriores da vida da vÃtima procurarão elucidar o motivo desta passividade), a coisa muda muito de Siodmak para Siegel. Os nomes das personagens são inteiramente alterados. O boxeador vivido por Lancaster no filme de Siodmak e que é assassinado no começo vira um piloto de corrida de automóveis no filme de Siegel, vivido por Cassavetes. Os sombrios assassinos da versão de Siodmak não têm muita relevância narrativa ou psicológica; na versão de Siegel o principal dos assassinos, interpretado por Marvin, parece ser tão protagonista quanto a personagem de Cassavetes e é ele quem, intrigado com a passividade de sua vÃtima, vai querer saber por que ela não reagiu à própria morte (na versão de Siodmak surge a figura à parte dum investigador para deflagrar os flashbacks).
Se Os assassinos de Siodmak, a despeito do brilho de seus intérpretes centrais, é um tÃpico filme noir envelhecido, Os assassinos de Siegel permanece vivo e apaixonante graças à energia de filmar que dele emana; Siegel relê os signos da narrativa noir à luz de seu cinema nos anos 60 e o faz com extraordinária inventividade. Angie Dickinson, como a fatalÃssima Sheila Farr que põe a perder todos os homens com que cruza, é um daqueles seres definitivos do cinema diante dos quais o espectador sempre se põe a pensar que não haveria como fugir da sedução de cobra desta Eva, mesmo sabendo que o abismo nos espera logo adiante; sentimos a tentação de nos perder por ela. Entre as curiosidades desta obra-prima, a interpretação de Ronald Reagan como um gângster que financia a garota fatal; Reagan está tão bem dirigido que sua canastrice se apaga e sobressai o brilho da direção de atores de mestre Siegel. (Eron Fagundes)