É triste como o publico não quer ver, nem se interessa, por filmes brasileiros que não sejam obviamente comerciais. Não adianta jornais falarem, festivais darem prêmios, críticos elogiarem porque, ainda mais com filmes nacionais, eles não têm qualquer credibilidade.
Este é um desses casos, uma fita modesta, de baixo orçamento, feita em co-produção com a Itália (o que explica o fato do dono do restaurante ser italiano), realizada por gente de Curitiba (onde foram rodadas todas as cenas externas - com exceção dos planos dos letreiros, que tentam determinar o lugar da ação como sendo São Paulo - mas tanto os locais quanto os atores coadjuvantes são paranaenses e nunca comprometem).
Para quem escreveu um livro sobre culinária e o cinema como eu (‘O Cinema Vai à Mesa’ em parceria com Nilu Lebert, da Editora Melhoramentos), não há como não se divertir com o filme, que tem um ponto de vista satírico, muito brasileiro. Seu herói é interpretado pelo ator nordestino - baiano - João Miguel (que fica melhor em comédias como “Cinema, Aspirina e Urubus”, do que dramas como “Mutum” e “O Céu de Suely”), que sabe fazer todas as caras, todas as reações corretas. A melhor maneira de ver o filme é como um retrato do brasileiro, no viés de Mario e Oswald de Andrade, aqueles que criaram a teoria do autofagismo.
Nonato é um verdadeiro Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, que se deixa levar, mas se considera um malandro capaz de tirar vantagem de qualquer situação, e sempre quer ficar com o beliche de cima.
O filme corre em dois tempos (aliás, o roteiro do diretor e parceiros é muito bem sacado e inteligente): a chegada do herói a São Paulo, onde consegue emprego num boteco e revela seu talento natural para a cozinha (sabe-se que a maioria dos cozinheiros da cidade é do Nordeste) e para o sexo (se envolvendo com uma prostituta). Tem também fraca resistência às bebidas alcoólicas, o que irá lhe trazer problemas sérios. Paralelamente, ficamos sabendo que ele cometeu algum crime (ouvimos seus pensamentos em off) e que, por isso, está na cadeia; por sorte, onde está um dos chefões do crime, para quem ele tem a oportunidade de revelar seu talento de mestre-cuca. Às vezes erra (como quando faz um tira gosto à la colombiana, ou na carne crua do carpaccio), mas tem tanto talento nos temperos que conquista o respeito dos parceiros de crime e cela.
Contado como fábula, com humor (por vezes negro, mas sem cair no exagero), o filme padece de um título pouco atraente. Mas quem for assistir vai gostar.
Tomara que o cinema brasileiro tivesse mais filmes inteligentes e originais como este. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 28 de abril de 2008)
.A gastronomia é o centro narrativo de Estômago (2007), filme ambientado em torpes subúrbios paulistanos dirigido por Marcos Jorge. Mas nada há do refinamento nórdico de A festa de Babette (1987), do dinamarquês Gabriel Axel. Nem mesmo o vomitório político do italiano Marco Ferreri em A comilança (1973). O que vemos em Estômago é a desglamurização absoluta do cinema e da culinária, provocando no espectador uma inquietação à brasileira; as coisas em cena são sujas e provocativas, os cenários melancolicamente miseráveis e prostituídos, os tipos humanos desgraciosos mesmo. Lembrei-me de um antigo e pouco aludido filme do alemão Rainer Werner Fassbinder, A encruzilhada das bestas humanas (1972), onde Fassbinder exercitava a ausência de glamour de certas vidas por uma Alemanha desolada. A São Paulo suburbana mostrada por Estômago constrange e confrange o observador.
Estômago pode ser um filme irregular em seu ritmo narrativo, mas não deixa de atrair o espectador por certos aspectos de sua linguagem. O roteiro alterna cenas da trajetória do protagonista até atingir o estrelato como cozinheiro (ele chega à cidade sem eira nem beira, como muitos nordestinos que buscam escapar da miséria de sua região rumando para o dourado Sul) com outras cenas passadas dentro do presídio onde igualmente sua habilidade culinária é requisitada, agora a duras penas; inicialmente não se sabe bem se as seqüências do presídio são anteriores ou posteriores às dos restaurantes, mas logo isto se aclara e passamos a esperar pelo crime dentro dum restaurante que levou a personagem a sair das cozinhas para a penitenciária.
De uma certa maneira, o ator baiano João Miguel sustenta a força narrativa. Seu rosto despojado e desglamurizado lembra certos registros de intérpretes como José Dumont e Wilson Grey; e ele sabe humanizar em doses adequadas sua criatura, levando-nos ao interesse de um filme às vezes rude; este interesse despertado é tributo quase absoluto da sensibilidade interpretativa do ator central. (Eron Fagundes)