Crítica sobre o filme "Ensaio Sobre a Cegueira":

Rubens Ewald Filho
Ensaio Sobre a Cegueira Por Rubens Ewald Filho
| Data: 07/01/2009

Não há como não respeitar a escolha de Fernando Meirelles. Depois de ter sido indicado ao Oscar por Cidade de Deus e ter dirigido a vencedora do Oscar® de Atriz Coadjuvante Rachel Weisz por O Jardineiro Fiel, ele optou para seu próximo trabalho, uma adaptação de um livro do inadaptável vencedor do Nobel, José Saramago. Um autor reconhecidamente difícil, que evita coisas triviais como capítulos e pontuação e que optou por uma trama alegórica sobre a cegueira humana em todos os sentidos. Mesmo assim insistiu numa adaptação absolutamente fiel (que o próprio e ranzinza autor aprovou, chegando mesmo a chorar, conforme você pode conferir na gravação disponível no You Tube). E topou mesmo que o filme fosse apresentado como abertura do Festival de Cannes, embora não fosse o mais adequado para ocasião tão festiva. É pesado, difícil, trágico, e não dá muitas esperanças quanto à condição humana. Arriscou e acabou levando algumas criticas muito severas. Agora estréia o filme antes no Brasil, numa versão um pouco revisada (houve mudanças na luz e redução de alguns monólogos de Danny Glover ao final). Será sucesso? Provavelmente não.

O próprio Meirelles admite que o filme provoca reações extremas, há os que gostam muito, se apaixonam pelo filme, embarcam nele. Outros que o rejeitam inteiramente, difícil um meio termo. Talvez porque seja um filme sem heróis, não há por quem torcer, nem mesmo a protagonista chega a ter muito tempo em cena, ou não é suficientemente desenvolvida (é o caso de Julianne Moore, que se conduz com a habilidade habitual mas não aparenta ter chances de premiação).

Mais difícil ainda porém é falar mal do filme. Reclamar do que? De ser fiel ao livro? Seria ridículo. Dele ser um cruel e verdadeiro retrato de como o homem, o ser humano é e continua a ser absolutamente cego, diante de quase tudo que é valido e importante? Na verdade a metáfora é clara: numa grande metrópole não identificada (bastante de São Paulo, um pouco de Uruguai, um pouco de Canadá) as pessoas começam a ficar cegas sem explicação. Supõe-se que seja uma epidemia.

Começa com um japonês que é enganado por um vigarista (Don Kellar que também é o roteirista). Depois um médico (Mark Ruffalo), uma garota de programa (Alice Braga), um garoto e assim por diante. Todos eles vão sendo internados numa espécie de prisão sanatório que vai ficando entulhada de gente. Apenas uma pessoa não fica doente mas finge ser cega, a mulher do médico (Juliane Moore) que por amor fica cuidando dele e ajudando os outros.

Aos poucos a situação vai se degenerando e culmina quando os prisioneiros de um grupo passa a controlar a comida e para entregar os víveres exigem desfrutarem das mulheres. Ou seja, usá-las como objeto sexual para os homens poderem sobreviver (quem comanda o grupo é Gael Garcia Bernal, outra vez sem me impressionar, não passa de um baixinho enfezado se passando por importante).

A seqüência mais forte é quando eles passeiam pela cidade arrasada com pessoas cegas, lutando para sobreviverem a qualquer custo. Mas o final parece um pouco apressado. Porque este não é um filme que pretende emocionar ou provocar grandes emoções. Sua maior preocupação é visual: quer que o espectador sinta a experiência pela qual estão passando os personagens, de forma que há momentos onde não conseguimos ver grande coisa (há mesmo escuro total), ou vemos mal. Ou pensamos que estamos ficando sem visão.

Outro trabalho espetacular (ainda que mais difícil de apreciar) do parceiro habitual de Meirelles, o fotógrafo Cesar Charlone. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 12 de setembro de 2008))

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A internacionalização de filmar do brasileiro Fernando Meirelles dá um passo adiante com Ensaio sobre a cegueira (Blindness; 2008), versão cinematográfica de um dos mais elaborados e apaixonantes romances do escritor português José Saramago. Depois do excessivamente industrial O jardineiro fiel (2005), ficção inglesa extraída dum livro de John le Carré, Meirelles melhora um pouco o padrão crítico ou estético de sua nova produção internacional, mas ainda insuficiente para que seu cinema retorne à autenticidade de seu maior sucesso, comercial e artístico, Cidade de Deus (2002), igualmente buscado num original literário, um festejado romance antropológico do carioca Paulo Lins.

Ensaio sobre a cegueira é um filme que, em seus episódios, segue os passos da narrativa de Saramago. Começa naquele engarrafamento num trânsito possivelmente lisboeta em que um motorista vai perturbar o fluxo porque inesperadamente ficou cego e se conclui com a mística cegueira daquela que foi a única a manter a visão quando todo o mundo cegou. O que ocorre de decepcionante com o filme de Meirelles é que perde de cara e vai depois também perdendo aos poucos a capacidade que tem o livro de Saramago de estabelecer uma visão metafísica e social dos episódios e estabelecer-se como uma visão da sociedade contemporânea em que as coisas avançam às cegas e são poucos os que têm a transparência de ver; o caos entre a visão e a cegueira é o que está no texto de Saramago, e isto só em pequena parte o filme de Meirelles logra transpor para a tela, pois as preocupações de formalismo industrial do diretor brasileiro desviam, talvez inconscientemente, a análise social para as características de um filme de gênero, ali entre o suspense e o horror (os cegos de Meirelles são um pouco como zumbis, e não é isto o que eu penso ao ler Saramago). Meirelles utiliza bem os recursos de produção e se vale com perfeição de seus bons atores; e seu filme se limita a estas superfícies importantes para a comunicação com o público, mas insuficientes para a elevação da obra a algo mais do que uma ilustração de prestígio de um romance aclamado. É curioso observar como um filme aparentemente mais embutido no cinema industrial como O nevoeiro (2007), de Frank Darabont, extraído de um autor mais comercial do que Saramago, o norte-americano Stephen King, chega melhor a esta ponte entre um gênero (o suspense) e as visões mais abrangentes (a metáfora social). Meirelles perdeu-se na complexidade de Saramago e deu ao espectador-leitor uma visão rasteira de todo o universo narrado.

Há certas coisas interessantes no filme de Meirelles. A utilização duma fotografia baça, esbranquiçada, onde alguns momentos de excessos de luz provocam a cegueira do espectador. Se Meirelles quisesse ousar, poderia ler o livro de Saramago com um filme experimental assim: a luz desfocada e branca se alterna com fundos negros, ou seja, um breu na tela, alguém lê o texto de Saramago para provocar as imagens da cegueira na mente do espectador. Mas quem se interessaria por tal filme, radical e forte? Assim como está, a realização de Meirelles, para além de suas possíveis qualidades formais, é uma amostra da cegueira do cinema para com a literatura. (Eron Fagundes)

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Quando o genial Fernando Meirelles (O Jardineiro Fiel) anunciou há alguns anos a sua adaptação para o cinema do livro homônimo de José Saramago, o público, cético, acreditava ser uma obra inadaptável. E, quando se assiste ao filme de Meirelles, notam-se claramente elementos literários que só poderiam ser mesmo difundidos por um cineasta do calibre de Meirelles que, ousando, faz do livro de Saramago (do qual não tive a oportunidade de ler) cinema fantástico. Méritos merecem ir, claro, ao próprio roteiro elegantemente concebido. Nessa tradução toda, encontramos sim alguns elementos fora do lugar, uma ou outra irregularidade e uma cena em si que realmente não me agradou (a do incêndio). De resto, porém, Meirelles se mostra hábil e incontestavelmente visionário, marcando a audiência com um texto forte e um modo de filmar extraordinário.

Visto isso, talvez o maior triunfo da obra seja a ousadia de seus aspectos técnicos e, por isso, sua fotografia magistral que, banhada por um branco cor de leite (refletindo a cegueira branca que assola seus personagens), nos instiga fortemente a testemunhar os obstáculos de seus personagens com um diferente olhar. Os enquadramentos todos possuem algum significado maior e as imagens são os meios com os quais Meirelles nos choca terrivelmente ao vermos o ser humano cair na desgraça (e é interessante ver como a fotografia torna-se fora de foco quando se vê o ser humano no seu estado mais deplorável). Além disso, numa união especial, a trilha sonora, que usa de diversos sons e instrumentos para despertar os mais variados sentimentos, forma um elo vibrante com as imagens focalizadas com grande poder pela câmera experiente do diretor e companhia. São virtudes estas que transformam Ensaio Sobre a Cegueira numa experiência sensorial essencial tanto para nossa conexão com os eventos em si, quanto para nosso envolvimento mais denso com os personagens retratados. Personagens estes dos quais, méritos de Saramago, não possuem nomes para primordialmente universalizá-los, numa síntese dos tipos da sociedade de hoje que passam por arrogância, preconceito, egoísmo e em vezes a mais pura canalhice, numa intensa observação dos meios aos quais o ser humano está apto a ir à sua busca por sobrevivência e poder.

Muitas vezes, as particularidades desses personagens não são desenvolvidas mais a fundo justamente por essa questão de retratar “o homem universalâ€. Isso inibe, em vezes, algum sentimento maior que possamos ter com os personagens. Mas é bom esclarecer que as intenções do filme são outras. Ensaio Sobre a Cegueira é, até seus últimos minutos surpreendentemente otimistas, uma descida ao inferno que incomoda, incita sentimentos angustiantes e provoca na audiência uma reflexão tenebrosa sobre nossa capacidade como ser humano, nossos instintos carnais e selvagens e nossa sede intensa por sobrevivência. É um choque elétrico que, por meio de um espelho mórbido, traz nossa imagem assustadora como assinatura. Em seu formato brilhante de alegoria da sociedade e dos tipos e males que nela se habitam, o filme se assemelha muito à O Nevoeiro com a única exceção de seu fim que, ao contrário da adaptação de Stephen King de fim pessimista, nos traz uma certa esperança contundente ao fim que quer nos dialogar sobre a força do amor, a necessidade de amizade e nossa igualdade como seres até nos tempos mais sombrios. Tudo isso sem um pingo de pieguice, prevalecendo o sentimento genuíno e a crueza estarrecedora.

Os atores são, em suma, grandes virtudes do filme. O elenco todo satisfaz e captura a essência de seus personagens como muita desenvoltura e talento. Nesse meio, destaca-se Mark Ruffalo (Traídos pelo Destino), Alice Braga (Eu Sou a Lenda), Gael García Bernal (O Passado) e até Danny Glover (Rebobine, Por Favor), recuperando seus pontos perdidos comigo numa atuação melancólica. Mas o grande poder tour de force do filme é Julianne Moore (Não Estou Lá), soberba e profundamente intensa na sua realização arrepiante. Contida, carrega em olhares e expressões todo o peso do mundo que reside sob sua excepcional personagem. Com toda esta mescla de valores, torna-se por isso incontestável o próprio valor único da obra de Meirelles como mais puro cinema. Ainda que a sessão possa apresentar um ou outro equívoco breve a jornada para dentro de nós mesmos revelar-se inquietante, tudo vibra apenas para exaltar o talento de seu diretor, a genialidade de Saramago e a competência tremendo de todos envolvidos tanto na parte técnica primorosa quanto no elenco excepcional. Obrigatório. (Wally Soares – confira o blog Cine Vita)