Crtica sobre o filme "Escafandro e a Borboleta, O":

Rubens Ewald Filho
Escafandro e a Borboleta, O Por Rubens Ewald Filho
| Data: 13/12/2008
A memória e a imaginação. Estas são as únicas coisas que uma pessoa não perde quando continua vivendo, pensando, ainda que enclausurada em si mesma. E isso não é uma metáfora. Falo de estar enclausurada em si mesma literalmente. Lendo assim parece não significar muito, mas pensando a respeito, isso é maravilhoso. A descoberta que Jean-Dominique Bauby faz em determinado momento de sua vida deveria servir de farol para os demais seres viventes, como eu e você. Fiquei pensando sobre isso e sobre tudo que nos conta o filme O Escafandro e a Borboleta e fiquei arrepiada.

Enquanto assistia ao filme, me lembrei muito - e acho isso inevitável - de Mar Adentro. O filme estrelado por Javier Bardem e dirigido por Alejandro Amenábar é uma ode à liberdade individual, à escolha de uma pessoa em seguir vivendo - e em que condições ela faz isso. O Escafandro e a Borboleta também é isso, mas o filme vai além. Ele consegue ser algo parecido a Mar Adentro e, ao mesmo tempo, o seu inverso. Parecido enquanto mostra uma história de privação total de movimentos, enquanto conta a tragédia de dois homens apaixonados pela vida. Mas as semelhanças terminam por aí. Porque O Escafandro e a Borboleta mostra uma decisão totalmente contrária a de Ramón Sampedro, já que Jean-Dominique Bauby decide pela vida e não pela morte. Dentro de seu “escafandro” ele descobre uma outra maneira de sentir e refletir sobre a vida. E mais: decide mergulhar nela, aproveitá-la com ironia, sarcasmo e deixando um testemunho belíssimo e comovente. Esse testemunho foi publicado primeiro em livro e, depois, virou este filme igualmente belo e impressionante - o curioso é que Sampedro também publicou um livro sobre sua experiência e seu ponto de vida sobre continuar ou não a viver.

A primeira característica que me chamou a atenção de O Escafandro e a Borboleta foi a narrativa em primeiríssima pessoa no início. Literalmente nos colocamos por “detrás” dos olhos do protagonista, escutando o que seus pensamentos lhe diziam enquanto sua voz não saia, assim como presenciando tudo que lhe ocorria ao redor. Impressionante, nesta parte do filme, a direção de fotografia extremamente técnica e bem-feita de Janusz Kaminski (este polonês talentosíssimo que trabalhou em muitos filmes com Steven Spielberg) e o trabalho do diretor Julian Schnabel. Só bem depois é que a câmera sai da posição de “olhos-do-protagonista” para mostrar outros ângulos da realidade - e transportar-se também no tempo e no espaço. Muito interessante esta narrativa - aliás, o roteiro de Ronald Harwood baseada na obra homônima de Bauby é outro ponto forte do filme.

Além da narrativa em primeira pessoa, o filme ganha muitos pontos por seu elenco afinado e regular. Ninguém se desponta muito, mas todos fazem um trabalho inspirado. Além de Mathieu Amalric como Bauby, destaco Marie-Josée Croze e Olatz López Garmendia como as belíssimas e competentes médicas Henriette e Marie, respectivamente. Merece um capítulo a parte a interpretação de Emmanuelle Seigner como Céline Desmoulins, a ex-mulher de Bauby e mãe de seus três filhos. Ela está estupenda em seu papel, como uma mulher devotada ao homem que amou (e continua amando, ainda que de maneira distinta), que tenta controlar seus sentimentos mas que, ainda assim, demonstra os ciúmes que tem de Inès (Agathe de la Fontaine), a mulher que se tornou a paixão na vida de Bauby. Muito interessante a complexidade de Céline e, ao mesmo tempo, sua simplicidade. Merece uma menção especial também a comovente interpretação de Max von Sydow como Papinou, o pai um tanto “esclerosado” de Bauby.

Além de contar uma nova maneira de encarar a vida e, ainda assim, de sentí-la plenamente, O Escafandro e a Borboleta é como uma minibiografia de Bauby, que conta seus amores - além de Céline e Inès, também o de Joséphine (Marina Hands) -, sua relação com a família - incluindo seus três filhos, Théophile (Théo Sampaio), Céleste (Fiorella Campanella) e Hortense (Talina Boyaci) - e com amigos, como Laurent (Isaach De Bankolé). A interpretação de Anne Consigny como Claude Mendibil, a mulher que possibilita que o livro de Bauby seja publicado, interpretando o que ele diz através de suas piscadas, também merece destaque. Ela consegue equilibrar no tom exato dedicação e apaixonamento pelo que ele consegue fazer, por seu testemunho de vida e coragem de enfrentar as limitações do que lhe aconteceu.

O interessante da história é que o que acontece com Bauby é a privação extrema da liberdade. Afinal, ele não pode se mexer e nem falar, não pode ir para onde tem vontade, nem tocar as pessoas que ama, nem sentir nada com os dedos ou a ponta dos pés. Consegue apenas raciocinar e, mais tarde, expressar o que sente e pensa através dos olhos. Apaixonado pela vida, ele prefere continuar respirando e existindo desta maneira, fazendo uso principalmente da sua imaginação e da sua memória, para continuar curtindo cada minuto que tem a seu dispor. É um exemplo maravilhoso. A memória e a imaginação, que instrumentos incríveis. Além deles, eu adicionaria ao exemplo de Bauby algumas doses de sarcasmo e de senso de humor. Acho que só através desta última ferramenta ele consegue suportar a sua condição após o derrame.

Como disse antes, O Escafandro e a Borboleta é o contrário de Mar Adentro. Lembro que quando vi o filme de Amenábar, adorei a história. Especialmente porque ela tratou com “distanciamento” e, ao mesmo tempo, uma aproximação inevitável o drama de Sampedro que, diferente de Bauby, podia falar. Ele decidiu que preferia morrer a continuar vivendo em sua condição de paralisia. Gostei do filme porque ele trata com respeito a decisão de uma pessoa em querer morrer - afinal, se alguém não suporta a vida como está tendo, por que não pode decidir terminar com ela? Sei que sempre se deve ter esperança e que a vida está cheia de boas surpresas, mas quem pode condenar alguém que decidiu que prefere que tudo termine? Eu não posso julgar uma pessoa como Sampedro. Ainda assim, devo admitir, que gostei muito mais do exemplo de Bauby, até porque ele mostra que até na pior condição humana imaginável é possível sacar proveito, aprendizado.

Sobre a memória e a imaginação… realmente, acho que por pior que esteja a vida de alguém ou por maior que seja a sua privação de liberdade - de escolha, por exemplo -, sempre lhe resta a capacidade de lembrar do passado com orgulho, com fantasia. Sempre é bom olhar pra trás e ver tudo que uma pessoa já caminhou para chegar até determinado lugar. Recordar todas as dificuldades que passou e as quais conseguiu superar, lembrar de todos os amores e pessoas especiais que fizeram a sua vida até ali… lembrar é importante para se saber a pessoa que somos e o porquê de sermos desta maneira. E a imaginação… até a memória fica interessante com um pouco de imaginação, de cores absurdas. E a vida atual também. Fantasiar faz bem, imaginar uma realidade distinta abre horizontes. Memória e imaginação podem nos libertar, nos prender, nos firmar no chão ou nos dar asas. Tudo depende do uso que se faz das duas.

Julian Schnabel não é um diretor muito prolífero. Tanto que desde a sua estréia na direção em 1996 com Basquiat - um filme delicioso! -, ele só havia dirigido um filme antes deste O Escafandro e a Borboleta: Before Night Falls, outro filme interesantíssimo com Javier Bardem e datado do ano 2000. Ou seja: em 11 anos ele só fez dois filmes. Mas os dois de qualidade, diga-se. (Alessandra Ogeda – confira mais detalhes no blog Crítica (non)sense da 7Arte)

.

Leia também a opinião de Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos

.

Leia também a opinião de Eron Fagundes na coluna Cinemania