Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 01/11/2008
A obra cinematográfica do russo Alexandr Sokurov é quase que em sua totalidade desconhecida por aqui. Isso não chega a surpreender, pois as exigências estilÃsticas do realizador são muitas, o que dificulta o acesso do observador a seu mundo de imagens. É pena que a época das mostras nacionais promovidas pelos consulados já vai longe, e resta ao espectador crÃtico contar com os azarões dos circuitos comerciais. Todavia, não vale a pena chorar o leite derramado, e vamos à realidade.
Como ocorria em Moloch (1999), em Arca russa (Russian ark; 2002) o cineasta propõe uma fantasia de imagens barrocas para refletir sobre eventos históricos; uma visão fantasista da história que não abdica do rigor crÃtico e filosófico do pensador-artista que é Sokurov. Arca russa vai mais além em sua provocação formal; os noventa e sete minutos de projeção foram rodados num único plano, valendo-se da câmara digital para acompanhar no interior do museu Hermitage de São Petersburgo (cidade-cenário de tantas páginas de Dostoievski, o cérebro tortuoso da arte literária soviética —observem: Sokurov é outro cérebro daquele universo artÃstico), três séculos de história. Para evocar o desafio proposto, montar um filme sem cortes, é inevitável citar Festim diabólico (1948), de Alfred Hitchcock; em Sokurov os avanços do cinema digital permitem-lhe uma mobilidade de câmara mais enxuta, com menos aspectos de um cinema caseiro e primitivo, e mais entranhado numa visualização onÃrica e rebuscada.
Além de dirigir as imagens, coordenando admiravelmente os movimentos de câmara (pois o filme é bem isto; um movimento da câmara para dentro do passado russo, percorrendo um cenário atual, o museu, transformado pela imaginação do cineasta num cenário de antanho), Sokurov coloca sua voz a conversar com um outro eu do narrador, um europeu que vaga entre as imagens de antigamente recriadas no interior do museu pelo cinema. A voz-off de Sokurov (um outro narrador que sublinha as imagens e é personagem-complementar daquele europeu perdido na época) desembaraça-se, aos sussurros, no deslumbramento das reconstituições de tempo do filme; o fascÃnio do realizador pela imponência czarista fica saliente em sua narrativa; é curioso notar como esta voz-off subjetiva traz certos ecos da voz-over objetiva comum num dito cinema literário, as conversações da voz com a personagem visÃvel no plano servem de fio narrativo semelhante (embora mais sutil) ao da voz-over.
Arca russa é igualmente um exemplar extraordinário do cinema-baile, de que Amarcord (1973), do italiano Federico Fellini, talvez seja o pico. A influência da estética do baile na linguagem do cinema mereceria algum ensaio, pensei eu durante a projeção do filme, a forma como a evolução de pares num salão determina o modo narrativo de uma obra cinematográfica. Está em minha mente sobretudo Um carnet de baile (1938), do francês Julien Duvivier, e mais ainda O leopardo (1963), de Luchino Visconti, depositário do mais belo baile cinematográfico já filmado. Em Arca russa, perto do final, surge outro belo baile em imagens de cinema. Com tudo, fica difÃcil para o espectador deixar a sala de projeção desgrudado seu cérebro destas poderosas imagens que só nos fazem mais interessados em conhecer os demais trabalhos de Sokurov, um deles chamado Páginas sussurrantes e que trata da notável literatura russa do século XIX. (Texto escrito em 22.03.2003 por Eron Fagundes)