Crítica sobre o filme "Beijo Roubado, Um":

Rubens Ewald Filho
Beijo Roubado, Um Por Rubens Ewald Filho
| Data: 23/08/2008
p align="justify" class="link2" style=´text-indent:45.0pt´>Escrever sobre cinema é um ato de lógica cinematográfica. Ver um filme é um ato da emoção cinematográfica. Entre as reflexões em palavras (escritas ou faladas) e o contato direto com as imagens de um filme surge um espaço a que se pode chamar distanciamento crítico. Todo espectador que, além de ver filmes, gosta de falar sobre os filmes que viu, experimenta este espaço em que a emoção (que nasce do irracional) se organiza racionalmente. Entre os meus amigos há quem ache que sou muito cerebral e deveria deixar envolver-me mais emocionalmente pelos filmes. Já lhes respondi que busco no cinema a emoção, como qualquer espectador; mas é preciso antes definir que tipo de emoção o espectador procura. Há a emoção proporcionada por Elisa, vida minha (1977), do espanhol Carlos Saura, onde o que se deve escavar é uma certa sensibilidade na natureza humana; e  há a emoção trazida por Os caçadores da arca perdida (1981), do norte-americano Steven Spielberg, onde o que se exige do observador é simplesmente torcer pelo mocinho.

Todas estas idéias sobre emoção e razão no cinema me vêm a pêlo quando deparo com Um beijo roubado (My blueberry nights; 2007), mais um belo filme do chinês Wong Kar-Wai. Aquele rigor da marcação cinematográfica que atingiu o ápice em Felizes juntos (1997) e Amor à flor da pele (2000) retorna pleno em Um beijo roubado; como sempre, Kar-Wai retira os enlevos amorosos de sua banalidade (Amor à flor da pele) para alçá-los à condição de tratados visuais tão densamente psicológicos quanto agudamente filosóficos; e Um beijo roubado, por sua estrutura narrativa enviesada e sua pictoricidade criativa e requintada, namora a experimentação cinematográfica, que fora antes radicalizada em Felizes juntos, ambientado em Buenos Aires onde um casal homossexual chinês vive suas aventuras radicais e tortuosas. Um beijo roubado igualmente namora o platonismo sentimental; se em Amor à flor da pele o caso entre um homem e uma mulher vizinhos permanece num estranho espaço não-carnal, em Um beijo roubado as relações entre um atendente de bar e uma garota em crise afetiva permeiam também estas sensações não-carnais; o maravilhoso beijo que surge no final é uma espécie de bloqueio a esta visão platônica e um passo para o sexo, mas não retira a devastação espiritual que emana da trajetória dos dois, que se distanciam e contêm em seus desejos. Aí é que surge uma aliança entre aquele conflito do espectador que vê o filme com a emoção e o revê em palavras com a razão, e a maneira como Kar-Wai edifica seu trabalho. Kar-Wai constrói Um beijo roubado com rigor de encenação: nada é casual ou desleixado, tudo é extraordinariamente marcado. Dirige com o cérebro estético de que dispõe. Mas deste cérebro estético emana a mais pura emoção do cinema. Senão, como explicar que o coração do espectador acelere e delire?

O que está em cada imagem de Um beijo roubado é a restauração da magia do cinema. Feita com a lógica de um dos maiores do cinema contemporâneo. (Eron Fagundes)

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Grandes diretores espalhados pelo mundo já foram tentados a fazer carreira em Hollywood. Alguns se deram muito bem - o maior exemplo acredito ainda ser o de Hitchcock -, outros nem tanto (digam o que disserem, mas Walter Salles não fez a melhor estréia possível com seu Dark Water, ainda que eu não tenha achado o filme de todo ruim). Desta vez quem teve esta oportunidade foi o diretor chinês Kar Wai Wong, muito venerado por filmes como Fa Yeung Nin Wa Amor à Flor da Pele), Chung Hing Sam Iam (Amores Expressos) e 2046 (para citar alguns). A estréia dele em Hollywood se chama Um Beijo Roubado e conta com atuações de Norah Jones, Jude Law, David Strathairn, Natalie Portman e Rachel Weisz. O bacana do filme é que ele preserva algumas das principais características do diretor, ainda que se trata de um filme com toques hollywoodianos. No final, assistimos a várias histórias de amor, de rompimentos, de reencontros, de descobertas e de sobrevivência (ou morte) contadas com a digital de Kar Wai Wong, com vários planos se sobreexposição de planos diretos, de cores, de “sentidosâ€, em uma interessante dedicação para contar histórias nos detalhes, com paciência e delicadeza. É um romance diferente do usual de Hollywood, o que lhe faz ganhar pontos. Mas, ao mesmo tempo, sofre de algunas pequenas ciladas que não deixam que seja um filme arrebatador.

O excesso de cores, os planos longos e próximos dos atores, as quebras de narrativas “acidentaisâ€, tudo isso faz parte do tipo de cinema feito por Kar Wai Wong. Muitos já contaram histórias de desilusões amorosas, de recomeços e tudo o mais, mas poucos são os que contam essas histórias de maneira diferente. Pois o diretor chinês faz isso em Um Beijo Roubado.

Eu gostei do filme. Ele abriu a edição 60 do Festival de Cannes, em 2007. Pelo que eu vi, a maioria dos críticos torceu o nariz para ele. Um Beijo Roubado também concorreu ao principal prêmio do festival, mas não ganhou (quem levou a estatueta foi 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias). Realmente ele não tinha forças para ganhar, ainda que se trate de um filme competente. Mais que tudo, ele tem um grande apreço pelas imagens e conta, sem dúvida, com um dos mais bonitos (e desenhados) beijos do cinema.

O interessante do filme é a escolha da personagem principal. Ao invés de simplesmente encher a cara em noites seguidas ou de ficar em casa chorando, Elizabeth resolve esquecer o que considerava o “amor de sua vida†fazendo uma viagem pelo interior dos Estados Unidos. Ela parte como se não tivesse mais vida própria e passa pelas cidades buscando empregos simples, especialmente em restaurantes e bares. No caminho, vai encontrando outras histórias de amor e de perda e, assim, acaba entendendo a sua própria história. Vê o quadro em perspectiva. Seu exemplo deveria ser seguido por muita gente que sempre acredita que seus problemas são os maiores do mundo.

O bacana da história é justamente isso. A vontade da personagem principal em suprir a perda e enfrentar a dor conhecendo pessoas e suas histórias. Desta maneira ela encontra a Arnie (David Strathairn), um policial que todas as noites enche a cara para esquecer a ex-mulher Sue Lynne (Rachel Weisz), que o abandonou para viver outros amores na cidade de Memphis, no Tennessee. Elizabeth convive com Arnie em uma mescla de identificação, pena e medo. A história dele parece ter sido tragicamente desenhada. Rachel Weisz está belíssima e rouba cada minuto em que está em cena. David Strathairn mostra porque é um grande ator e imprime o tom exato de sua dor e falta de perspectiva em cada fala.

Depois que a história de Arnie e Sue Lynne se resolve, Elizabeth viaja novamente. Ela não fica estática no mesmo emprego e no mesmo lugar, como faz Jeremy. Ela ainda precisa viajar e descobrir outras verdades por aí. Assim ela começa a trabalhar em um cassino, onde conhece a Leslie (Natalie Portman), uma elegante e aparentemente rica mulher que vive entre as mesas de poker. Depois de perder todo o dinheiro que tinha, Leslie faz uma proposta para Elizabeth: ela lhe deixa os pouco mais de US$ 2 mil que tem economizados para comprar um carro para que Leslie volte às mesas de poker e, se ela perder, dá a Elizabeth o seu carrão conversível. Depois de perder, Leslie “dá†o carro para Elizabeth, mas pede uma carona até Las Vegas, onde ela irá encontrar um homem que pode lhe dar dinheiro e propiciar sua volta às mesas de jogos.

A verdade é que tanto Raquel Weisz quanto Natalie Portman são as beldades da história. Em uma visível metáfora em relação à torta de “Blueberryâ€, Norah Jones parece um “patinho feioâ€, um pedaço de torta sempre deixado pelos clientes do bar de Jeremy. Ela realmente não tem nada a ver com a beleza das personagens das outras duas atrizes. Mas, mais que isso, me incomodou um pouco a sua falta de “jogo de cintura†como atriz. Claro, ela é uma cantora, não uma atriz profissional. E, por mais que faça bem o seu papel, ela parece sempre estar um ou mais níveis abaixo das atrizes profissionais.

Mas voltando para a história: o bacana da trajetória de Elizabeth é que ela faz tudo ao contrário. Pelo menos do que é o padrão atualmente estabelecido. Ela não fica chorando ou enchendo a cara, como eu já havia dito. Ao invés disso, ela viaja e experimenta recomeçar sempre do zero no local em que vai morar. Enquanto isso, aproveita para aprender com os exemplos ao seu redor. Observa. Sente os cheiros, os sabores. Trabalha muito para não lembrar do ex que lhe traiu. E, além e mais que tudo, escreve cartas para Jeremy, lhe narrando detalhes e descobertas desta sua “road tripâ€. Ele, claro, vai se apaixonando por ela a cada carta, esperando seu retorno. Fica louco, tenta encontrá-la. Esta é, por tudo isso, uma grande história de amor à moda antiga, quando o interesse pelas pessoas crescia pelo que elas escreviam, por sua sinceridade em narrar o que pensavam e sentiam.

Tecnicamente falando o filme é bem feito, com escolhas muito marcadas - e já comentadas anteriormente. A busca constante do diretor pela intimidade, pelos detalhes normalmente esquecidos das situações, é muito bacana. Esse clima intimista é uma das suas marcas registradas. Gostei de ver isso em uma produção hollywoodiana. Os atores também estão bem, ainda que quem roube a cena seja realmente Rachel Weisz, David Strathairn e Natalie Portman (ainda que está última me faça lembrar demais a sua Alice em Closer).

Um Beijo Roubado custou aproximadamente US$ 10 milhões. Ele participou dos festivais de Cannes, Hamburgo, Valladolid (Espanha), Munique e Thessaloniki (na Grécia) em 2007. Não ganhou nenhum prêmio. Depois de estreiar no circuito comercial com poucas cópias no Canadá e na Finlândia, ele estreou no final de novembro de 2007 na França. Nos Estados Unidos ele só estreiou, também com número limitado de cópias, em fevereiro deste ano. Me parece que é um filme que será um bocado “alternativo†desde o começo, com poucas cópias circulando e pouca divulgação de mídia. Pelo jeito já nasce “cultâ€.

O diretor Kar Wai Wong também escreveu o roteiro do filme - com a ajuda de Lawrence Block. A idéia original é do próprio Kar Wai Wong. Algo interessante da história, para mim, é a marcação de tempo e de lugar meio ao estilo de um “roteiroâ€. Também gostei que os cartazes do filme seguem o estilo do mesmo. (Alessandra Ogeda – confira mais detalhes no blog Crítica (non)sense da 7Arte)

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Estou entre os admiradores incondicionais do diretor chinês Won Kar-Wai, e pouco me importa que este seu primeiro filme americano não chegue a ser uma obra-prima, como Amor à Flor da Pele (2000). O importante é que ele tem um olhar, um estilo, extremamente pessoal, que permeia toda sua obra, conseguindo resultados sempre notáveis, no mínimo interessantes. Talvez ele tenha ficado fascinado demais com a paisagem americana (como já sucedeu com outros estrangeiros), para dar maior importância ao roteiro e à história. Talvez tenha procurado fazer apenas um filme de estrada, com história de amor, sem maiores pretensões. E também é discutível a escolha da cantora Norah Jones como protagonista, já que a filha de Ravi Shankar não tem uma personalidade marcante, sendo apenas uma figura passiva, em torno da qual gira a história e o elenco. De qualquer forma, ele era fã, e Norah foi a única escolha para protagonista em sua estréia no cinema americano.

Mantém-se o clima romântico, enevoado, oblíquo, do melhor Kar-Wai, ao contar a história de Elizabeth, que fica arrasada quando é abandonada por seu namorado de cinco anos. Procura um pouco de consolo freqüentando um bar de Nova York, dirigido pelo inglês Jeremy (Jude Law - este sim, cheio de energia e garra). É lá justamente que ela deve experimentar a Blueberry Pie, que tem importância na história. Mas, Elizabeth está determinada a viajar, depois de apenas um breve beijo no rapaz. Trabalhando como garçonete numa lanchonete em Memphis, ela ouve os lamentos de um policial alcoólatra (David Strathaim), diante da infidelidade da esposa (um bom momento de Rachel Weisz). Mas quem entra com tudo é Natalie Portman, que faz uma inveterada jogadora que ela encontra em Nevada, e com quem experimenta os altos e baixos de Las Vegas.

Continuamos tendo a tradicional trilha musical com canções pop, a fotografia elaborada (aqui também em externas, inclusive do deserto, visto por um Jaguar), o romance discreto, mais sugerido que mostrado. Não há duvida que é um filme menor mas nem por isso menos agradável e interessante. (Rubens Ewald Filho publicado na coluna Clássicos de 14 de abril de 2008)