O espectador desavisado terá uma surpresa. Apesar de o trailer ter ocultado isso, este filme é a versão de um famoso musical da Broadway, que se tornou tão consagrado que, ultimamente, tem sido apresentado em teatros de ópera, como convém ao prestÃgio de seu autor, Stephen Sondheim, considerado por todos como o maior compositor de sua geração. O fato de ser uma cantoria interminável explica o fracasso do filme, e o fato de não ter tido as esperadas indicações principais ao Oscar®. Além disso, não é um musical comum: sua originalidade está no fato de ser grand guignol, ou seja, é gore, sanguinolento.
Embora o público americano tenha uma relação mais simples com cadáveres, membros decepados e sangue jorrando (até por causa do Halloween), isso deve causar estranheza e até repulsa por aqui, afastando o público feminino.
Para piorar, a trilha musical não é das mais simples e assoviáveis. Teve duas ou três canções que depois foram cantadas em shows (‘Joanna‘, ‘Pretty Women‘, ‘Not While I’m Around‘), mas são complexas, um gosto adquirido. Apesar das restrições, e de ser difÃcil de se mergulhar no projeto, é preciso convir que o trabalho de Tim Burton é um dos melhores de sua carreira.
Utilizando muito CGI (efeitos por computador), ele conseguiu um notável resultado na cor (ou falta de cor, com exceção do vermelho do sangue), na direção de arte esplêndida (do grande italiano Dante Ferretti, dos filmes de Scorsese, Fellini), e nos belos figurinos (de Collen Atwood, de ‘Memórias de uma Geisha’, ‘Chicago’); ou seja, em toda a parte visual. Tanto que o filme teve indicações ao Oscar justamente por ‘Figurino’, ‘Direção de Arte’ e por Johnny Depp, já que também na condução dos atores Burton saiu-se bem.
Johnny Depp continua a gostar de tipos bizarros, e chega mesmo a convencer como cantor, principalmente na tela (no disco funciona menos). Helena Bonham Carter, mulher do diretor (em papel criado por Angela Lansbury) também não compromete, num elenco que tem até o Borat (Sacha Baron Cohen), fazendo o barbeiro rival que logo é despachado.
É bom relembrar que a história é inspirada em fatos reais. Teria realmente existido Benjamin Barker, um barbeiro britânico que trabalhava na Fleet Street, no centro de Londres, depois famosa por seus jornais. Mas Barker teve a infelicidade de ter uma mulher bonita, e por isso foi perseguido por um juiz corrupto (o sempre ótimo vilão Alan Rickman), que o condenou à prisão, injustamente.
Quando começa o filme ele saiu da prisão e retorna para Londres com outro nome, o fictÃcio Sweeney. É ajudado por uma mulher solitária, Mrs Lovett, que dirige uma não muito higiênica casa de tortas. Participando de um concurso de rua com outro barbeiro, ele acaba adotando uma técnica. Mata seus fregueses e o corpo deles é jogado diretamente para o porão, onde sua parceira aproveitará a carne para rechear suas tortas, que logo farão muito sucesso. O final nos reservará ainda algumas surpresas, à moda de Charles Dickens.
Embora eu tenha ficado fascinado com a maneira com que o filme é narrado (como Burton evoluiu como cineasta, e já está merecendo ser reconhecido mais pela Academia), nunca fui admirador da trilha e não consegui superar a estranheza pelo resultado.
Ou seja, não é para todo mundo. Nem mesmo para os fãs de musicais antigos. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 12 de fevereiro de 2008)
.O norte-americano Tim Burton não é um cineasta que se enquadre facilmente nas amarras conceituais do cinema de Hollywood. Embora, ao mesmo tempo, sua aproximação ao gênero fantástico de filmar se alinhe mesmo dentro de certos requisitos hollywoodianos; seus delÃrios perversos não chegam a ter a textura do realizador polonês Roman Polanski.
Sweeney Todd: o barbeiro demonÃaco da rua Fleet (Sweeney Todd: the demon barber of Fleet Street; 2007), seu atual e controvertido filme, pode estar à distância da densidade poética de Edward, mãos-de-tesoura (1990), seu principal trabalho, mas é uma realização fÃlmica que tem uma exigência estética um tanto quanto rara nas programações de cinema da cidade. De certa maneira incompreendido por algumas ousadias que ousam descaracterizar o rigor clássico de encenações de números musicais, Sweeney Todd é um vomitório visual escrachado e perturbador de Burton; filmado numa fotografia desbotada e chegando mesmo a um tom descolorido que mimetiza um preto-e-branco fosco e dúbio, o novo Burton é uma narrativa sombria, um pequeno e assustador e em muitos aspectos original circo de horrores edificado por um cineasta certamente dono dum estilo particular de filmar.
A história contada em Sweeney Todd pertence ao anedotário de realidade do universo londrino do século XIX; esta história foi inicialmente adaptada para os palcos da Broadway e agora caiu nas mãos de Burton, o cineasta dos pesadelos perversamente inocentes. Um barbeiro cuja filha foi seqüestrada por um juiz sedutor planeja vingar-se e passar na navalha o pescoço do juiz; aliando-se a uma fabricante de tortas de carne, o barbeiro passa a degolar todos os seus clientes e, despejando os cadáveres em seu porão, fornecer à s tortas de sua mulher a carne humana dos que freqüentam sua barbearia. A torta de carne humana vai ser, pois, comida pela comunidade londrina. O caso de canibalismo inconsciente duma coletividade (comem torta de carne humana sem o saber) se assemelha ao que ocorreu em Porto Alegre, na mesma época, quando o açougueiro José Ramos, também auxiliado por uma mulher (que, prostituindo-se, seduzia as pessoas, arrastando-as para os locais de assassinato), fez lingüiças de carne humana. O caso foi contado em livro pelo historiador gaúcho Décio Freitas e mais tarde romanceado em outro livro pelo jornalista David Coimbra. Em seu livro Décio anota que o naturalista inglês Charles Darwin teria feito apontamentos estupefatos ao saber o que ocorrera na longÃnqua Porto Alegre. É pena que Décio já faleceu; se não, seria de questionar por que Darwin atravessou com sua curiosidade (não fisicamente) o Atlântico para sua pesquisa da bestialidade humana quando uma história de sua civilizada Londres estava ali à sua mão. (Eron Fagundes)