Crítica sobre o filme "Lição de Amor, Uma":

Eron Duarte Fagundes
Lição de Amor, Uma Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 14/05/2008
Como o francês Jean Renoir e o italiano Roberto Rossellini, o sueco Ingmar Bergman é uma enciclopédia do cinema. Como certa vez se disse de Renoir, em Bergman está contido todo o cinema. Uma lição de amor (Em lektion i karlek; 1954) é uma das muitas admiráveis peças da filmografia-engrenagem que é o conjunto de filmes de Bergman; propondo-se inicialmente como uma agridoce reflexão sobre a natureza da comédia (o texto-over que abre a narrativa fala do filme como uma história cômica que poderia ter sido trágica mas é de riso porque acabou bem) e concluindo-se no fim como um casamento difícil reatado (um conto moral de felicidade), Uma lição de amor supera as limitações do cinema amoroso da década de 50 e, por diálogos cortantes, estruturas formais elaboradas e imagens expressivas e impressivas, dá, não uma singela lição de amor como poderia imaginar no princípio o narrador de Bergman, mas uma nova lição de cinema de um autor tão profundo quanto generoso.

No centro da trama, David e Marianne, o casal separado que acaba por encontrar-se num vagão de trem; os diálogos levam as mentes das duas personagens ao passado, quando se conheceram, quando tiveram filhos, quando romperam. Mesmo utilizando um sinal característico de som e imagem como um ruído de cristais que indica a transposição temporal, como ele repetiria em Morangos silvestres (1958), Bergman arma uma narrativa onde o tempo flui com grande elegância e profundidade.

O inferno conjugal é ainda e sempre o foco da câmara de Bergman. Mas o sentido cômico da realização vai mais para a ciranda sentimental de Sorrisos de uma noite de amor (1955) do que para a obscuridade dramático-expressionista de Noites de circo (1953). Nos três filmes uma identidade: provocação sentimental entre as personagens, o ciúme chegando a seu clímax. Em Noites de circo é na noite do espetáculo: o mago do circo está entre sua atual companheira, que toca com ele o circo, e a ex-mulher que ele foi visitar durante o dia; à noite sua companheira o provoca com outro homem durante o espetáculo. Em Sorrisos o embate se dá no jantar. Em Uma lição de amor as explosões vêm durante um baile.

Segundo conta Bergman em seu livro de memórias, uma de suas esposas, a jornalista Gun Hagberg, foi a modelo real com que construiu a Marianne interpretada por Eva Dahlbeck em Uma lição de amor; Gun teria sido igualmente a inspiração para a personagem de Desirée Armfeldt, a cortesão também vivida por Eva em Sorrisos. Gunnar Bjornstrand, o ator na pele de David, é outra figura habitual no cinema de Bergman dos anos 50. A filha do casal está na caracterização de Harriet Andersson, então no sol de seus vinte e poucos anos; Harriet começou no cinema de Bergman em Mônica e o desejo (1952), mas esteve presente em toda a carreira do cineasta, até seu testamento para cinema, Fanny e Alexandre (1982).

O final solene, com o ritual num quarto de hotel, a placa com legendas na porta, o aparecimento dum pequeno anjo para o casal (um novo filho em sua nova lua-de-mel?), coroa o filme como um conto de fadas para adultos, como aduz o narrador-over no início. No entanto, é mais do que isto, é uma aguda investigação da natureza humana, nada ingênua. (Eron Fagundes)