Por Redação
| Data: 08/05/2008
Mestre da comédia cinematográfica americana, o austrÃaco Billy Wilder exercita em Beija-me, idiota (Kiss me stupid; 1964) sua ironia fina, sutilmente enviesada, de fundo europeu, onde coloca sua aguda inteligência a serviço do espetáculo fÃlmico hollywoodiano, leve mas dotado de alguma densidade. É bem verdade que o filme não está entre suas obras-primas, mas é bastante mais agradável de ver que o surpreendentemente tosco em seus efeitos Cupido não tem bandeira (1961), uma buliçosa mas travada sátira à Guerra Fria dos anos 50 e 60.
Beija-me, idiota é na verdade uma crônica de interior, assim como a obra-prima A primeira página (1974) é uma crônica de redação de jornal. Wilder descreve, com precisão, em Beija-me idiota, a atmosfera de interior, seus cenários e limites, observando o casal central, o amigo frentista do posto de gasolina em frente, o bordel do lugarejo. A este povoado chamado Climax chega um astro da música, Dino, e ali é obrigado a ficar por uma noite em face de contratempos com seu carro; sua presença mexe com os sonhos musicais de um pianista e de seu amigo cantor frentista. A mirabolante idéia do frentista para seu amigo pianista, para que mande sua esposa embora por uma noite e a substitua por uma meretriz da boate para agradar ao cantor famoso, vai permitir a Wilder rodar aquelas mutações irônicas de papéis que lhe renderam um de seus mais divertidos e ácidos filmes, Quanto mais quente, melhor (1959).
Enfim, com ousadia para a época, mas com uma sutileza que evita a grosseria dos filmes de hoje, Wilder faz sua crÃtica à vidinha familiar interiorana. A prostituta vive seu dia de esposa. A esposa vive seu dia de prostituta. O cantor, que a pianista queria evitar a todo o pano que topasse com sua esposa, vai parar no bordel onde a esposa se recolheu para fugir daquilo que julgava as torpezas do marido. Por vias transversas, o cantor papou a esposa do apavorado e ciumento pianista. Uma fábula amoral de Wilder.
Saliente-se ainda o desfocado estrelismo de Dean Martin como o cantor e o desengonçado em cena de Kim Novak como a prostituta Polly; Kim, para quem não se lembra, foi a impagável protagonista de Um corpo que cai (1959), onde Alfred Hitchcock extraiu coisas estranhas de seu deslizar precário pelos cenários e de sua problemática dicção. (Eron Fagundes)