Crtica sobre o filme "Rosto, O":

Eron Duarte Fagundes
Rosto, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 29/03/2008
O rosto (Ansiktet; 1958) é um filme cheio de diálogos. Um filme cheio de frases: o sueco Ingmar Bergman sabe como poucos (talvez o francês Eric Rohmer) inserir seu brilho literário no senso de cinema, no ritmo próprio duma narrativa em imagens. Assim, mesmo que O rosto se volte para algumas passadas reflexões metafísicas, o filme é o mais puro cinema. Contando com a fotografia nuançada de Gunnar Fischer, Bergman exibe a controlada alucinação da faculdade expressiva de sua imagem cinematográfica, herdeiro certamente do expressionismo alemão mas que o reforma, atualiza e experimenta nos moldes de seu avançado cinema da alma. É certo que O rosto é em muitos de seus aspectos um filme discursivo, mas nunca é rançoso ou enrijecido: é um cérebro ágil e em movimento, é um cineasta-filósofo e não uma múmia filosófica que tomou duma câmara de cinema.

O rosto está cheio de palavras, como se disse. Mas a falação bergmaniana apresenta aqui um contraste: a personagem central, dono de um teatro ambulante da Suécia da primeira metade do século XIX e apresentador de espetáculos que estabelecem a dúvida entre o paranormal e os truques mágicos, passa boa parte do filme mudo, nega-se a explicar seus conceitos ao médico e ao policial que querem uma revelação lógica das ações do mágico; Albert Emmanuel Vogler, com sua mudez, é um ancestral de Elizabeth Vogler, a atriz que emudece horrorizada com o mundo em Persona (1966). No silêncio destas personagens Bergman a faz a crítica da palavra, muitas vezes abundante em seus filmes. Em Gritos e sussurros (1972) todo o início do filme é feito de tensão visual. A palavra tarda a aparecer. Vai aparecer primeiramente um bilhete escrito por Agnes, a irmã moribunda, bilhete que revela às suas irmãs que está sofrendo. Depois a metafísica do verbo vai exuberar e contracenar com a plasticidade gótica das imagens.

Este contracenar da palavra áspera e profunda com o terror gótico também se estabelece em O rosto, que é um filme metafísico que em alguns momentos se vale da liberalidade de seu assunto para derivar para os arrepios que visam a assustar o espectador. Já se falou nos elementos de horror que pipocam no universo de Bergman, embora se saiba que o horror bergmaniano é muito mais um meio que um fim.

Em O rosto a ausência da palavra no protagonista é tratada exemplarmente por Bergman. Sem palavras, Albert Vogler é o cenário-rosto, suas emoções de angústia e raiva e humilhação se expressam nos gestos da face; e Max von Sydow, contricto intérprete bergmaniano (a boca especialmente é o centro nervoso deste cenário-rosto e vai indicando os pólos de linguagem). O rosto exibe a trupe habitaul do cineasta, trupe que ele domina com a intimidade da convivência fílmica: Ingrid Thulin, Gunnar Bjornstrand, Bibi Andersson, Erland Josephson, cada um trazendo seu próprio registro e aprofundando-o.

O rosto utiliza dois arquétipos, dois antagonismos. Vogler simbolizaria o irracional. Vergerus, o médico, seria o signo da razão. Uma questão que começa no século XIX, quando a religião de fato se separou da ciência, e se prolongou no século XX, quando a ciência se converteu num deus. Mas Bergman se situa muito longe das facilidades do clichê. Os arquétipos mexem-se: humanizam-se. Há boa dose de raciocínio no irracional de Vogler. E o racional de Vergerus tem suas fraquezas: amedronta-se quando Vogler “ressuscita”. O rosto é contado pelos dois pontos de vista: o racional e o irracional, Bergman é Vogler e Vergerus ao mesmo tempo, não consegue explicar tudo, mas esforça-se.

O longo afastamento final pela estrada da carruagem onde vão os artistas ambulantes de Vogler em O rosto é um ponto de inflexão na consciência do espectador ativado por Bergman. Cineasta de idéias, Bergman muitas vezes racionaliza as emoções; cineasta dos sentimentos, ela acaba por enraizar estas emoções racionalizadas no irracional. (Eron Fagundes)