Crítica sobre o filme "Batismo de Sangue":

Rubens Ewald Filho
Batismo de Sangue Por Rubens Ewald Filho
| Data: 03/10/2007

É muito complicado lidar com tortura num filme. Ainda mais num momento com este, onde os americanos praticamente institucionalizaram seu uso, como prática comum e aceita. E que o cinema de terror a esta banalizando numa série de filmes (tipo Hostel, Wolf Creek) que tornam chique o sadismo e aceitável qualquer tipo de ternura, vista como diversão. Diante disso, temos um filme como este que retrata fatos históricos e verdadeiros e que optou por mostrar cenas de tortura de forma bastante detalhadas. O que pode tornar o filme insuportável para muitos que seriam seu público alvo. Essa foi uma opção do diretor mineiro Helvécio Ratton, que conforme biografia que lançamos pela Imprensa Oficial na Coleção Aplauso entende do assunto porque teve participação ativa na Luta Armada, tendo que fugir para o Chile. Isso explica porque fez um filme muito sóbrio, praticamente sem trilha musical (ao menos melódica e sempre esparsa), em cores terras, sombrias como se fossem mesmo os anos de chumbo. Muito diferente por sinal do resto de sua obra.

Infelizmente não optou por qualquer imparcialidade. Todos os personagens são dogmáticos, tem absoluta certeza de que a luta armada é o único caminho e vivem discursando palavras de ordem. Quando sabemos que não era bem assim. Apenas um protagonista na sua loucura tem a lucidez de discutir vagamente o projeto, que não contava com o apoio do povo. Todos os outros agem como paus mandados, seguindo cegamente o que lhe mandam, sem maiores traços de dúvida ou humanidade. Por outro lado, o maior vilão, chamado por seu nome verdadeiro, Fleury foi feito por Cássio Gabus Mendes, de forma exagerada e caricata, por vezes ridícula. Devia ter feito justamente o oposto, quando mais real e matizado, maior teria sido o impacto.

Batismo se propõe a contar a historia da participação da Igreja no movimento de apoio a Marighella, por parte dos dominicanos. O roteiro fixa-se em 5 deles, Beto (Daniel Rezende) que é jornalista, Oswaldo, Fernando, Ivo e Tito. Este último deveria ser por justiça o protagonista porque tem a história mais dramático. Submetido a torturas ele não resiste e cometerá suicídio quando num exílio na França em 1974 (o filme já começa com esta seqüência). Atormentado por lembranças e culpas.

Falta foco a narrativa que nunca deixa Tito tomar o lugar central. Começa com uma sucessão de fatos e informações e prossegue num ritmo lento, se fixando demais nas cenas de torturas que poderiam ser sugeridas (às vezes é melhor esconder e deixar a gente sentir o efeito do que explicitá-las). E por vezes, elas são insuportáveis. Pode ser que tenha sido essa a proposta, mas isso também torna o filme penoso. Também não ajuda a interpretações irregulares, Daniel continua sua dolorosa busca de fazer esquecer Cazuza, mas o elenco de apoio é decente e o filme é segurado pela sensível presença de Caio Blat , que mergulha com toda alma na figura de Frei Tito.

O filme então resulta assim muito digno, sério, contando uma história que o público não quer ouvir, nem mais se interessa.
(Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 4 de maio de 2007)

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p align="justify" class="link2" style=´text-indent:45.0pt´>Uma das seqüências mais bonitas e comoventes do cinema brasileiro desta década está em Batismo de sangue (2006), de Helvécio Ratton: cercados de gente humilhada e injuriada pela violência dos torturadores, a câmara encarando desesperada as celas onde agoniados seres humanos lançam seus olhares fundos e apreensivos, um grupo de frades dominicanos (eles também envolvidos com a guerrilha política do Brasil dos anos 60, eles também presos políticos vilipendiados pela tortura) começa a entoar uma missa na prisão; o ritual todo, com a distribuição duma simbólica hóstia no final, tem uma autenticidade arrasadora dificilmente atingida em algum outro filme nacional de nossos dias. É a realização mais forte de Ratton, diretor duma amável e elegante adaptação de Eça de Queiroz em Amor & Cia (1998); o articulado roteiro de José Louzeiro, um dos principais escritores de nosso cinema, veteraníssimo e sábio, vai buscar nas memórias de uma das personagens, o Frei Beto, elementos de nossa história que não deixarão espectador algum indiferente graças ao notável senso cinematográfico de Ratton, que junta à sua costumeira elegância uma força de perplexidade e indignação da imagem que é passada contundentemente ao observador. As emoções emanadas de Batismo de sangue são tão sangüíneas que parecem tomar conta das paredes e dos espaços perdidos numa sala de cinema; é um dos raros filmes que sai junto conosco, colado à nossa psique, de dentro do cinema para a rua, para uma vida real onde, a duras penas, como o jovem e desorientado Frei Tito, teremos de caminhar à sombra do que vimos: se a figura do torturador Fleury assombra o religioso Tito em todas as partes do mundo onde anda, a presença de Batismo de sangue em nossa experiência cinematográfica vai incomodar nosso habitual conformismo.

Inicialmente, pode-se dizer que Ratton tem alguma dificuldade em driblar as interpretações frágeis de Caio Blat e Daniel de Oliveira, que vivem os centrais Tito e Beto. Mas Ratton vai usar este tom precário de seus intérpretes para expor verdadeiramente a fragilidade de suas personagens, fragilidade que se torna um sangue exposto diante da barbárie da tortura. Ratton acerta até onde poderia errar. Seu retrato da tortura sob o Brasil ditatorial é o mais incisivo de que se tem notícia, superando inclusive aquilo que foi mostrado no clássico Pra frente, Brasil (1983), de Roberto Faria; tratando do tema que trata, com sua responsabilidade pessoal, Ratton não poderia ser ameno nem bajular as possíveis características humanas dos torturadores: Cássio Gabus Mendes como Fleury impõe-se com um volume majestático de interpretação. E isto cai bem para que Ratton estude, como poucas vezes se fez entre nós, as relações entre o torturador e sua vítima nos anos que seguem; o torturador deixou mais do que marcas físicas no torturado, invadiu e manipulou seu cérebro, criou neurônios de tortura nos interstícios, perpetrou aleijões psicológicos que ficam bem claros nas reações meio esquizofrênicas de Tito diante de fatos corriqueiros da vida.

Creio que os frades de Batismo de sangue são as principais figuras de religiosos do cinema brasileiro. Lembram-me os comprometidos padres de Nazarin (1958), que o espanhol Luis Buñuel rodou no México, e de Diário de um padre (1950), belíssimo momento do espiritualismo do francês Robert Bresson. Não cuidem que Tito, Beto e seus companheiros possam enrubescer à evocação destas obras-primas do cinema; eles têm uma dignidade que resiste bem à comparação.
No fim, Batismo de sangue deixa em aberto a desolação moral de Tito no exílio que o deprimia; fechando-se assim, Batismo de sangue é também um olhar de culpa do Brasil para certos brasileiros impedidos de estar por aqui na década de 70.

P.S. 1: Batismo de sangue é outro filme brasileiro que evoca os anos de chumbo estabelecendo uma ligação entre o futebol e a alienação política, quem sabe; como Pra frente, Brasil, já aludido, e O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, o filme de Ratton usa o futebol como contraponto à violência político-social do Brasil dos anos 60 e 70. No caso, passando-se em 1969, o futebol que aparece, ouvido pelo rádio e gritado nos encontros de bares  como era habitual na época, é uma partida de Corinthians e Santos em que se estava na expectativa de que Pelé marcaria seu milésimo gol, mas quem marcou o seu foi Rivelino na vitória de 2 a 0 para o Corinthians. Quem viveu aqueles anos, agradece a Ratton a nostalgia.

P.S. 2: Na cadeia os frades de Batismo de sangue ouvem pelo rádio (vivíamos ainda a era do rádio) a notícia do seqüestro do embaixador americano no Rio onde se propunha a troca do diplomata pela libertação de quinze presos políticos. Este fato foi relatado detalhadamente em Hércules 56 (2006), documentário de Silvio Da-Rin, o que sempre vai estabelecer uma ponte temática entre um filme brasileiro e outro nestes anos de reminiscências. (Eron Fagundes)