Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 05/10/2007
O espectador crÃtico pasma da vitalidade de um filme como Testemunha de acusação (Witness for the prosecution; 1957), de Billy Wilder. Passadas tantas décadas de sua realização, a fita ainda interessa a espectadores de todas as latitudes mentais.
A função do crÃtico —hoje infelizmente relegada nos jornais a despejar textos-propaganda— deveria ser explicar como se articula a importância duma peça cinematográfica ao longo dos anos. E explicar com clareza de idéias e pessoalidade de linguagem.
A primeira questão para o analista da obra de Wilder é observar o esqueleto: seu argumento. As origens do argumento: uma história de Agatha Christie. Qualquer pessoa que leve a sério a literatura, sabe que a escritora inglesa arrola frivolidades criminais que, se tramam surpresas para prender o leitor, ao final do livro o jogam num grande vazio. A leitura não valeu a pena. A sucessão episódica é vertiginosa e não chega, por exemplo, ao nÃvel das observações psicológicas de A malvada (1950), de Joseph L. Mankiewicz; como texto, tudo é muito fútil e superficial, ao contrário do brilho potente das frases de Mankiewicz.
Fiz um esforço: anulei as imagens, fiquei só com o roteiro e vi o que este realmente é —um espaço branco. Porém, a sensação diante do trabalho de Wilder é de frescor e inteligência viva, mesmo que aparentemente estejamos diante do divertimento puro, o que a princÃpio incomoda a atividade intelectual. De onde vem a resistência de um filme tão singelo, despretensioso e comercial à passagem dos anos? Para o cinema, arte da premência do hoje, pelÃculas em luta com a perenidade (uma fita pode durar quinhentos anos como um texto de Shakespeare?), algumas décadas são muito tempo; para a arte em geral quatro ou cinco décadas é pouco, embora neste perÃodo muitas obras possam ser definitivamente enterradas.
A pergunta é: que filme-divertimento de hoje pode aspirar a uma vida cinematográfica como a de Testemunha de acusação? Os filmes de Steven Spielberg dos anos 80? Sou contra. Talvez o Quentin Tarantino de Pulp fiction (1994)? Sabe-se lá! E aà surge outra pergunta: que é um filme-divertimento?
Não sei se são as décadas que se passaram e o distanciamento e a segurança que a travessia do tempo oferece ao observador. Não sei se há objetividade em minha afirmação: nenhum filme de entretenimento de nossos dias me dá a tranqüilidade de admirá-lo sem culpa como o faço relativamente a Testemunha de acusação. Parece-me que o vienense Billy Wilder é um realizador mais crÃtico que a maioria de seus pares hollywoodianos: subverteu, dentro dos limites do cinema comercial, a historieta de Agatha Christie, valendo-se de um peculiar senso fÃlmico e de um jogo de atores notável. Sim: não temos aqui a mordacidade de Crepúsculo dos deuses (1950), a ironia selvagem de Quanto mais quente melhor (1959) ou a sutil crÃtica à ocultação do erotismo burguês em O pecado mora ao lado (1955), três obras-primas de Wilder. Que é que temos, então? Um diretor criativo. E sua criatividade não é episódica, como a de Christie (eu não chamaria criatividade a de Christie), mas de linguagem: e vemos como Wilder supera a trivialidade comercial da trama, derrotando o preconceito contra a fórmula do divertimento cinematográfico. Uma fórmula, assim como está em Testemunha de acusação, a despeito da disseminação dos filmes de tribunal, que o cinema de hoje não logra reeditar.
E chegamos aos crÃticos. Penso que não se deve reflexionar sobre um filme a partir de teorias, ainda que fascinantes. O filme é que deve gerar teorias. Dizia o ensaÃsta italiano Umberto Barbaro que o “filme-divertimento é imoral e antiartÃsticoâ€. E compõe um parágrafo extraordinário em seu livro Argumento e roteiro: “Os filmes fáceis matam, poder-se-ia dizer, parafraseando célebre dito de Flaubert. O divertimento que os filmes fáceis oferecem deve entender-se, com efeito, no sentido etimológico: divertir, distrair, alhear. De quê? Da vida, da verdadeira vida. E de que modo? Com a sugestão de mundos ilusórios e maravilhosos, fantásticos e longÃnquos.â€
Barbaro é, evidentemente, um cinéfilo intelectual; suas reflexões literárias são tão boas quanto as cinematográficas, mas seu mundo, não resta dúvida, é o cinema. Seria ele um daqueles espÃritos que o jornalista gaúcho Hélio Nascimento considera “crÃtico literário travestido de cinéfiloâ€, como alfinetou em certo artigo de jornal? Um fato: a menor frase, a simples partÃcula sintática do rigoroso Barbaro diz-nos muito mais que a profusão de lugares-comuns conceituais e lingüÃsticos com que Hélio desfila diante de nós em seu livro Cinema brasileiro (1981). Outro fato: a aceitação a priori do parágrafo de Bárbaro poderia levar-nos a rejeitar uma obra tão importante para o cinema quanto a de Alfred Hitchcock. Uma inquietação: é sutil, é talvez imaterial a distinção entre um plano de Hitchcock e um de seu discÃpulo Brian De Palma, entre o gesto visual de Wilder e os muitos gestos-cópia de dramas forenses encenados por Hollywood. Uma certeza: não são as afinidades com a literatura que tornam um cinéfilo mais ou menos genuÃno que outro; Paulo Emilio Salles Gomes, o mais importante pensador cinematográfico brasileiro, confessou num de seus artigos que sua paixão pelo cinema foi tardia, antes do cinema suas preocupações eram polÃticas e literárias; um crÃtico de cinema (ou de pintura, ou de música) deve ter intimidade com as palavras, porque é seu instrumento de trabalho, e esta intimidade só pode provir do contato com a literatura.
Toda esta conversação é para situar Testemunha de acusação em meu coração de cinemanÃaco. É uma situação de espanto diante de sua capacidade de sobrevivência, décadas depois de suas primeiras exibições. FascÃnio diante dos ardis interpretativos que Wilder oferece a seus atores centrais, o trêfego Charles Laughton na pele do arguto advogado, o simplório Tyrone Power como o surpreendente réu e a enigmática e inesperada Marlene Dietrich fazendo a companheira alemã do acusado. E é delirante a maneira como o cineasta usa da reviravolta final do texto de Agatha Christie: terminadas as longas dissertações jurÃdicas, absolvido o réu, esvaziada a sala do tribunal, encenar-se-á diante da câmara de Wilder revelações perversas e um novo assassinato; Wilder, ao cabo de seu filme-divertimento, aproveita para discutir o caráter aleatório da encenação cinematográfica, ou seja, volta-se para sua própria linguagem, que é o que mantém vivo o filme até hoje. (Eron Fagundes)