Crítica sobre o filme "Estranho, O":

Eron Duarte Fagundes
Estranho, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 13/09/2007
O estranho (The stranger; 1946), do norte-americano Orson Welles, pertence ao grupo de policiais negros do realizador de que as obras-primas A dama de Xangai (1946), Grilhões do passado/ Mr. Arkadin (1955) ou A marca da maldade (1958) são expoentes revolucionários. Diante da grandeza inovadora dos policiais seguintes de Welles (de certa maneira Cidadão Kane, 1941, sem se filiar ao gênero, lança as bases destas narrativas sombrias e obscuras nas mãos de Welles), O estranho tem sido recebido como um corpo estranho na filmografia do cineasta. Dele disse o francês François Truffaut: “é aquele cuja história mais facilmente se conta ao sair do cinemaâ€. Outro francês, o crítico André Bazin, anota sobre o filme: “Welles dessa vez se submetera com fidelidade ao plano de trabalho previsto e ao orçamento do filme.†Um Welles submisso, o gênio indomável afinal um dia foi domado? Não me parece justo estabelecer as coisas assim com tanta facilidade. A criatividade dos planos de Welles está presente em O estranho; ele nunca filma de maneira trivial, comum, como podem dar a entender as notas de Truffaut e Bazin, mesmo que sem querer propriamente; ele repuxa a angulação da câmara e traz a imponência de suas características de intérprete colada à linguagem, como tem feito desde Cidadão Kane; pode ser que ele não exercite tão delirantemente sua montagem eisensteiniana, pode ser que sua figura em cena seja mais contida e menos extravagante (influências severas do produtor Sam P. Eagle, diria Truffaut); porém ele nunca é um menino de colégio bem comportado (como se sabe desde seu curta-metragem adolescente The hearts of age, 1934), nunca está conforme com Hollywood, e o miolo da história de O estranho é tão obscuro e intrincado quanto o de qualquer filme de Welles e, como qualquer filme de Welles visto hoje depois de baixada a poeira de suas revoluções formais, pode ser engessado por um analista numa história.

O estranho se debruça sobre uma personagem americana misteriosa, vivida pelo próprio Welles; esta criatura estaria escondendo seu passado germânico nazista; depois de casar com uma americana para dissipar sua biografia, é perseguido por uma testemunha de seu universo teutônico, tendo de matá-la; um detetive se intriga com sua figura esquisita e vai caçá-lo até desvendar o mistério. A bela Loretta Young faz a amanteigada esposa do nazista. O desconcertante Edward G. Robinson, visto em clássicos do noir americano como Almas perversas (1945), do alemão Fritz Lang, e Pacto de sangue (1945), do austríaco Billy Wilder, é o detetive bisbilhoteiro.

Mergulhado em sombras e estranhezas, O estranho revela muito da mestria de Welles na utilização de suas características elipses narrativas. Uma destas elipses é um momento sublime do refinamento de filmar de Welles. É aquela seqüência em que o protagonista é desmascarado e executa sua inútil fuga. No miolo desta seqüência há cinco planos ordenados que rumam para a exposição duma elipse cinematográfica soberba. Acompanhem:

Primeiro plano: a mulher alcança, enraivecida, um objeto contundente para que o homem a mate; a angulação é enviesada, de cima para baixo.

Segundo plano: o detetive e o cunhado do criminoso (irmão da mulher) descem de um carro que estaciona de chofre.

Terceiro plano: os dois homens abrem uma porta e entram onde estaria o casal; se o plano anterior (o da descida do carro) é de cima para baixo, como o primeiro plano, este terceiro plano é de dentro para o enquadramento das personagens que chegam, em linha quase reta.

Quarto plano: o objeto que a mulher estendeu ao homem para que a matasse cai subitamente no chão (não aparece no plano a mão que o soltou — primeira elipse significativa da seqüência); é um plano médio muito rápido do objeto caindo.

Quinto plano: vemos uma porta que se está batendo como se alguém acabasse de sair apressado por ela (não vemos a personagem que se escapuliu, somente a porta indo para cá e para lá como se uma mão sôfrega tivesse bólido há pouco com ela; é a elipse básica da seqüência, a fuga — que não vemos — do homem, a fuga — que não está em cena — é sugerida pela força da montagem de Welles, um golpe de mestre).

Creio que este comentário é um esforço para resgatar esta obra-prima de Welles de seu limbo. Enfeixando, podemos ainda referir as notáveis filmagens do abismo que dão cabo de O estranho, com o corpo que cai de Welles se espatifando da torre da igreja, assim como Kim Novak tombando no vazio de imagens deslumbrantes em Um corpo que cai (1958), do inglês Alfred Hitchcock. As permutas entre dois gênios do cinema, Welles e Hitchcock, se estabelecem assim, sem uma questão de influência, apenas um sistema de trocas para universos fílmicos díspares. O estranho permeia uma questão política, o nazismo nos anos 40, mas é pura aventura estética, nenhuma semelhança com a história contada pelo greco-francês Constantin Costa-Gavras em Muito mais que um crime (1990), um criminoso nazista oculto na boa e democrática sociedade americana. (Eron Fagundes)