Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 20/07/2007
Billy Wilder viveu quase cem anos, mas duas décadas antes de sua morte rodou seu último filme. É um diretor de cinema americano nascido na Ãustria. Sua obra é o que há de definitivo naquilo que Hollywood produziu no século XX. Pacto de sangue (Double indemnity; 1945) foi o filme que deu inÃcio à sua carreira de obras-primas, onde seu domÃnio duma especÃfica narrativa cinematográfica e seu agudo senso de observação das coisas humanas e cinematográficas se exercitavam ininterruptamente. Não há fissuras na composição formal e temática de Pacto de sangue, uma elegia noir do casamento da paixão com a matreirice em duas personagens inesquecÃveis do cinema, o corretor de seguros que se apaixona pela mulher de um cliente e a mulher deste cliente, uma daquelas fêmeas fatais que, a partir do toque inicial de Wilder, se reproduziram muito no cinema americano dos anos 40 e 50 e tiveram até alguns herdeiros tardios em todo o mundo nos anos subseqüentes, como Corpos ardentes (1981), do norte-americano Lawrence Kasdan, e A dama do Cine Shangai (1987), do brasileiro Guilherme de Almeida Prado.
Partindo de uma história policial escrita por James M. Cain na década de 30 (o escritor repetiria a mesma trama em seu famoso O destino bate à sua porta, filmado pelo italiano Luchino Visconti e pelo norte-americano Bob Rafelson), Wilder, esperto como ele só, se valeu da ajuda do romancista de novelas policiais Raymond Chandler para compor o roteiro de seu filme; Wilder e Chandler não se afinavam como seres humanos, a troca de experiências para escrever o roteiro foi feita de alfinetadas, mas o resultado estético é pura harmonia: a habilidade de Chandler para diálogos precisos e econômicos e a sensualidade de filmar de Wilder são o supra-sumo do policial que Hollywood sempre gostaria de ter colocado na tela, mas nem sempre teve atrás das câmaras uma cabeça com a visão de Wilder, capaz de enxergar até em seu objeto de asco, o roteirista Chandler, um elemento que serviria na medida a seu propósito cinematográfico.
A história é passada ao espectador quando o protagonista, o corretor de seguros, usa um microfone e a câmara invisÃvel (o narrador neutro do cinema) para estabelecer seu confessionário cinematográfico de um crime que ele mesmo cometeu; intercalando as cenas do homem que está gravando para seu amigo e chefe suas confissões de criminoso com as reconstituições dos passos que levaram ao delito, Wilder articula com grande sabedoria todos os detalhes, sinuosos e matreiros, como a personagem da mulher, de sua tensa e densa narrativa; mas, sejamos sinceros, é uma densidade leve, irônica, divertida, como aquela de Ernst Lubitsch, diretor alemão com quem Wilder trabalhou em sua tateante fase européia (o roteiro de Ninotchka, 1939, um primor, é de Wilder), e se opõe à quelas insatisfações Ãntimas do cinema europeu mais intelectualizado. Wilder é antes um intelectual do divertimento e o faz com uma classe artÃstica que nunca baixa a guarda. Dentro deste flashback da ação criminosa que é Pacto de sangue, Wilder vai inserindo seus dados de mestre do cinema: um destes dados elevadÃssimos está naquele plano em que o chefe abelhudo do corretor quase dá com a amante perigosa à porta do apartamento deste corretor; as sutilezas de gestos, com a mulher se ocultando atrás da porta aberta, as manobras do corretor junto à porta para evitar o encontro indesejado, as ações e as palavras inocentes do chefe do corretor ali no corredor do prédio antes de entrar no elevador, tudo é descrito pelo cinema de Wilder com uma delicadeza, uma objetividade e um tecido formal espantosos.
Demais, Barbara Stanwick está mesmo demais como a manteiga venenosa de sua figura. Fred MacMurray compõe com categoria sua criatura, entre ingênua e perversa. E Edward G. Robinson, que funciona como uma espécie de detetive e pode ser lembrado pelo pintor anônimo e criminoso de Almas perversas (1945), obra-prima americana do alemão Fritz Lang, exibe sua total maturidade para iluminar este trio de intérpretes.
Acrescentando ainda a marcação musical do húngaro Miklós Rózsa, habitual colaborador de Wilder, fecha-se o cÃrculo da beleza artÃstica. (Eron Fagundes)