Crítica sobre o filme "Dama das Camélias, A":

Eron Duarte Fagundes
Dama das Camélias, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 05/07/2007
Há muitas seqüências dentro de teatros em A dama das camélias (La storia vera della signora delle Camelie; 1980), a versão cinematográfica rodada pelo italiano Mauro Bolognini para o romance francês de Alexandre Dumas Filho. Aparece o palco e as encenações, como se câmara se preocupasse exclusivamente com documentar a peça, ou seja, um teatro filmado, rígido, clássico. E aparecem os camarotes e o público do teatro: o universo teatral como personagem do filme. Claro: todas estas cenas estão no livro de Dumas Filho, era parte do jogo artístico da burguesia do século XIX ir ao teatro e a literatura de ficção de então descrevia amiúde estas idas ao teatro. Porém, a forma como Bolognini insere estas cenas-no-teatro em sua narrativa denota a influência da arte do palco em sua linguagem cinematográfica; isto, todavia, não enrijece seu processo fílmico, pois o cineasta abre sua escrita para as sutilezas de câmara e a hipnose barroca de sua reconstituição de época; em muitos aspectos (o teatro, o gosto pelos adereços de época) o cinema de Bolognini se aproxima do de outro italiano, Luchino Visconti, especialmente o Visconti de Sedução da carne (1954) e O leopardo (1963); pode-se dizer que o processo como o teatro mergulha no estilo de filmar destes italianos (Bolognini, Visconti) difere muito de outro “dramaturgo†do cinema, o sueco Ingmar Bergman, mais seco, mais despojado, mais áspero.

A dama das camélias, refazendo conscientemente os dramas românticos do século XIX numa tela de cinema, resgata para o observador mais sensível a dignidade dos melodramas de época. Há uma plástica nos figurinos, nos adereços cênicos, na movimentação da câmara e na montagem que torna os aspectos teatrais do cinema de Bolognini maleáveis e sedutores, dão-lhe uma fluência formal inesperada e exuberante. Tudo é acima de tudo bonito na rigorosa encenação novelesca a que Bolognini se entrega para contar a trajetória de paixão, doença e morte duma prostituta francesa que, como tantas outras desde então até hoje, nascida pobre, usada mercenariamente por seu próprio pai, se vale do que tem de melhor, sua capacidade de oferecer prazer sexual aos homens, para ascender socialmente. E o consegue. Só é derrotada por aquilo que derrota todos os seres humanos: a doença e a morte.

Profundamente belo em lirismo antiquado, A dama das camélias traz no papel-título uma emocionante caracterização da francesa Isabelle Hupert, revelada especialmente a partir da obra-prima Um amor tão frágil (1976), do suíço Claude Goretta. O rosto de Hupert identifica ao mesmo tempo a inocência e a consciência da personagem; mas não é só isto, a carga dramática do sofrimento tuberculoso da criatura, morrendo esvaída em sangue nos braços do pai, é antológica, mesmo que o espectador de boa memória possa lembrar do maravilhoso plano final da face de Greta Garbo na versão de 1936 de George Cukor para o romance de Dumas Filho. Nesta cena da morte de Alphonsine nos braços do pai, com quem ao longo do filme ela mantém uma relação ambígua, a exuberância da atriz contracena admiravelmente com a performance do italiano Gian Maria Volonté, intérprete de muitos filmes políticos da época, um deles, Atas de marúsia (1975), do chileno Miguel Littín, em exibição em Porto Alegre naquele distante dezembro de 1981 quando o filme de Bolognini também aportava por aqui.

O autor do livro, Dumas Filho, aparece no filme como mais um dos amantes de Alphonsine; Bolognini, com a discrição dos atentos narradores do cinema, não lhe dá nenhum relevo diferenciado. Mas aproveita para expor sua difícil e edipiana relação com seu pai, o também escritor Alexandre Dumas, de quem Dumas Filho é filho bastardo, como ele mesmo diz num diálogo, e o espectador deve colocar a angústia desta situação no centro moral do século XIX para bem entendê-la. Esta relação turbulenta pai-filho dos Dumas é sutilmente colocada como um espelho da tortuosa relação pai-filha de Alphonsine e seu genitor.

Bolognini é extremamente hábil e paciente em todos os detalhes com que edifica seu drama. Ao semear ao longo do filme a premonição da tuberculose de sua heroína novecentista (o sangue da primeira menstruação na cama, o sangue que esguicha do boi abatido quanto ela está passando —tudo vai anunciar o sangue final tuberculoso que sai do corpo de Alphonsine), o realizador exercita os poderes simbólicos do cinema.

Depois que o pai de Alphonsine revela ao Dumas pai as últimas palavras de sua filha antes de morrer segundo as quais este mundo se definiria como “um mundo de bandidos e prostitutasâ€, uma cortina se fecha num palco, como se Bolognini quisesse indicar em seu derradeiro gesto no filme o teatro como fonte cinematográfica. Ou buscasse um distanciamento emocional pela referência à linguagem (encenação) que expôs o drama. (Eron Fagundes)