Crítica sobre o filme "Moça com a Valise, A":

Eron Duarte Fagundes
Moça com a Valise, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/05/2007
O italiano Valério Zurlini é um destes cineastas que tiveram um certo prestígio em seu tempo (ainda que eivado de contradições críticas) e depois foram esquecidos pela história do cinema. Poder conhecer em dvd um de seus trabalhos mais brilhantes, A moça com a valise (La ragazza con la valigia; 1960), é uma bênção lançada no mercado pela Versátil e espera-se que em seu rastro venha toda a filmografia do realizador (que é pequena, pois ele morreu cedo e filmou pouco, dadas suas dificuldades de relacionamento com a indústria do cinema).

Há cinco anos foi relançado nos cinemas Dois destinos (1962), onde se pôde constatar que o rigor estético de Zurlini era parente do estilo pensado e vagaroso que outro italiano, Michelangelo Antonioni, punha na tela pela mesma época; mais transparente e menos secreto que Antonioni, Zurlini teria melhores condições de chegar ao público não fosse a má vontade dos míopes produtores para com o cinema minucioso mas sentimentalmente comunicativo do cineasta. Zurlini, falecido em 1982, concluiu sua carreira precocemente com O deserto dos tártaros (1976), uma adaptação do escritor italiano Dino Buzzati feita com uma orientação extremamente clássica desde seus enquadramentos até a montagem; o derradeiro Zurlini foi vilipendiado pela crítica e pouco visto pelo público, mas é uma bela realização tanto quanto me acusa a memória duma sessão alternativa deparada há vinte e um anos.

A moça com a valise me parece o mais sincero e o mais sincronizado em suas estruturas formais destes três Zurlinis, que é só o que, infelizmente, conheço de sua diminuta obra. A evocação de Antonioni torna a ser sentida, como em Dois destinos: os dilemas pessoais existenciais, os planos lentos, a iluminação desolada e sombria, as caminhadas volúveis das personagens. Mas em A moça com a valise surgem algumas inquietações mais próprias de Zurlini, uma certa trama romanesca que ele executa com o brilho de um escritor cinematográfico. Demais, a realização também capta uma atmosfera stendhaliana de filmar, na esteira de alguns filmes do também italiano Luchino Visconti: Sedução da carne (1954) e Noites brancas (1957). Uma aproximação enviesada e moral aos sentimentos confusos e perplexos de suas criaturas é o que basicamente caracteriza este “atmosferismo fílmicoâ€, onde a sedução (que é a essência do tema) se organiza em torno da linguagem do próprio filme.

Cláudia Cardinale, muito jovem, antes do estrelato, tendo de ver sua voz rouca natural dublada por interesses de limpeza da indústria, exubera na composição de sua ingênua cheia de uma malícia que é também ingenuidade. Uma identificação entre a atriz e a personagem, entre outras: como sua criatura (algo revelado brevemente num doloroso diálogo lá pelo final), Cláudia também teve um filho em solteira e escondeu o fato da sociedade. Jacques Perrin vive um dos mais perfeitos adolescentes da história do cinema, deslumbrado, à beira da consciência de seus pecados de ingenuidade mas sempre resvalando, tão caracteristicamente daquela época de costumes em transformação, mas igualmente eterno na forte pintura que lhe dá o cineasta e seu intérprete.

O roteiro de A moça com a valise é um quase nada sentimental: uma garota é abandonada por seu sedutor e, em sua busca insana do homem, encontra a casa, o homem se oculta, ela passa a relacionar-se com o irmão menor de seu namorado, um relacionamento ambíguo onde nem a moça volúvel nem o rapaz incauto sabem o que querem diante daquela estranha atração. Todavia, é deste quase nada novelesco que Zurlini extrai um dos grandes momentos do cinema duma época especialmente grande para o cinema. (Eron Fagundes)