Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 25/09/2006
NOTA: As observações que seguem foram escritas em uma de minhas revisões de “Jules e Jim†em 18.09.1997.
“Encontrar o cinema de François Truffaut dos tempos da nouvelle vague é um achado fascinante para um cinemanÃaco porto-alegrense da geração-70 que está no Rio numa breve viagem de férias; o filme, Uma mulher para dois (Jules et Jim; 1961), é uma obra-prima e foi visto nesta noite quente de sábado na sede do Cineclube MacunaÃma, em casa lotadÃssima, o que prova a disponibilidade do público carioca para eventos culturais importantes.†(Este texto foi escrito num quarto de hotel na praia do Flamengo, Rio, em 11.09.82).
Naquele setembro de 1982 o jovem de 27 anos que eu era estava formando uma bagagem cinematográfica. Estar no Rio era sempre a oportunidade de, aqui e ali, pescar um filme obrigatório do passado; um clássico. A fita de Truffaut seria exibida num edifÃcio da Cinelândia; tardei um pouco a achar o local, entrei sôfrego no recinto, dei com uma platéia refinada, comprei num balcão improvisado o livro Cinema trajetória no subdesenvolvimento, de Paulo EmÃlio Salles Gomes, assisti à projeção de Uma mulher para dois em estado de graça, como se estivesse em meu céu: ver cinema e ler cinema, que coisa boa!
Quinze anos depois, setembro de 1997, quinta-feira, frio hibernal, escasso público na Sala Eduardo Hirtz, Porto Alegre: algo bastante distante do curioso clima de excitação intelectual daquela Cinelândia de setembro de 1982.
Na tela, Uma mulher para dois revela o vigor estilÃstico do melhor Truffaut, aquele dos primeiros anos. A câmara desamarra-se, a montagem obedece a um ritmo livre, os movimentos da objetiva se incrustam ao cenário, isto é, são estes movimentos que parecem o próprio cenário (a utilização dos cenários por Truffaut, sob o signo da renovação, é um dado que impressiona). A linguagem do cineasta, por sua liberdade, situa-se à distância da dureza comercial dos últimos anos de sua carreira (o realizador morreu prematuramente em 1984).
Há muitas coisas interessantes que o olhar-revisor do observador pode pincelar no filme de Truffaut. O amor do cineasta aos livros, por exemplo. Na primeira cena de amor (as cenas de Truffaut são sempre pudicas quando se trata de sexo) entre Jim e Catherine (ela está trocando Jules por Jim) surge o livro de Goethe As afinidades eletivas. Jim entrega o volume a Catherine quando chega ao quarto; ao insinuar a relação amorosa, a câmara quadra em primeiro plano a capa da obra. Numa seqüência dentro dum cinema as personagens vêem os nazistas queimarem livros. Na cena amorosa, o livro é um signo, um elemento de linguagem; se na cena da fogueira ele também o é, a objetividade da crÃtica polÃtica se esgueira dentro duma crônica amorosa.
Diz-se que os filmes de Truffaut (e franceses em geral) são conversados demais. Em Uma mulher para dois há até uma voz-off que narra a história; uma seqüência é narrada sob a forma de cartas trocadas entre Jim e Catherine, uma das cartas é lida pela atriz Jeanne Moreau aparecendo a imagem da personagem quase ao canto da tela (não é uma imagem parada, pois a câmara traça um travelling pelos belos cenários campestres e ao mover-se faz mover igualmente o rosto da atriz enquanto diz a carta). Os textos fluem. Mas não é literatice cinematográfica. Tudo se encaixa numa linguagem ainda hoje surpreendente.
Jeanne Moreau tem uma de suas maiores criações como Catherine. Eu tinha seis anos quando Truffaut rodou este filme, talvez a mesma idade da menina que interpretou Catherine. De certa maneira, ou espiritualmente, sou um irmão Catherine, filho de Jeanne e François.
O final doce-amargo, Catherine jogando-se de carro no lago com Jim, deixando Jules viúvo de mulher e de amigo, foi muitos anos depois copiado pelo diretor inglês Ridley Scott em Thelma e Louise (1991), fazendo com que suas protagonistas femininas, perseguidas pela polÃcia, se jogassem de carro no precipÃcio. Catherine não foi perseguida senão por sua angústia pessoal. (Eron Fagundes)