Um filme dirigido pelo norte-americano John Ford, o mitológico diretor de faroestes numa América que os consumia avidamente, é sempre extremamente simples em seu processo e intenções. Não tenho um conhecimento amplo da filmografia de Ford para racionalizar a assertiva que vou referir, mas há um sentimento no ar, e eu partilho deste sentimento por amor a este filme, de que Rastros de ódio (The searches; 1956) é o mais belo trabalho de Ford; uma história dirigida com incrível uniformidade leva Ford a acompanhar o que sucede depois que uma família americana é chacinada por índios no selvagem Oeste ianque do século XIX e observar as idas e as marchas que conduzem a personagem de Ethan, o herói por excelência do cinema americano vivido pelo indefectível mito de uma determinada época cinematográfica John Wayne (canastrão mas funcional) à sua obsessão pelo resgate de sua sobrinha Debbie, única sobrevivente do massacre e aprisionada por anos pelos comanches. Neste aspecto o épico de Ford se assemelha a certas obsessivas narrativas orientais, como A múmia (anos 70), do egípcio Chadi Abdel Salam, onde a intenção clara e simples do cérebro duma personagem determina o ritmo plástico por onde enxergamos a história narrada: em Rastros de ódio a beleza dos cenários naturais de Monument Valley é captada com raro senso plástico e uma iluminação adequadamente crepuscular.
Rastros de ódio exacerba exemplarmente as características do cinema de Ford. Bastante mais apurado e emocionante que No tempo das diligências (1939) e Depois do vendaval (1952), o clássico de 1956 adquire aos poucos um sopro épico e mítico que talvez faça um pouco mais de sentido a comparação que lhe tributam com o longínquo grego Homero; embora esteja na hora, cem anos depois de sua invenção, de o cinema se libertar das muletas das outras artes a que sempre somos tentados a recorrer.
Pode-se dizer que em Rastros de ódiov Ford criou um realismo cinematográfico americano arcaico e intemporal; a encenação objetiva, os cenários verdadeiros, a natureza natural dos diálogos, o despojamento das interpretações quase nos fazem esquecer que se trata do Texas de 1868. Para Ford um faroeste nunca é de época, ele um homem à antiga estava falando daqueles tempos (que certamente assim como aparecem só existiram em sua imaginação) como se fosse um contemporâneo daqueles aventureiros duma América incógnita ameaçada por índios; é como se Rastros de ódio saísse duma produção de época para uma observação documental daqueles anos, como se Ford inventasse o cinema em 1868 e fosse ao Texas filmar uma história que já existia e esperava o registro da câmara. É um processo metafórico de filmar que converte uma realização de época num documentário.
Mesmo que Ford não tenha rodado nenhuma obra-prima como esta, Rastros de ódio demonstra a excelência da “direção invisível” do cineasta a que François Truffaut aludia: uma exatidão de estilo que incomoda aqueles que querem ver no cinema sempre a turbulência barroca do realizador austríaco Max Ophüls. (Eron Fagundes)