Não é um filme fácil, nem digestivo, nem descartável. Descrevê-lo como um soco no estomago seria redundante, já que estamos falando de um trabalho do mesmo diretor que fez Cidade de Deus. Basta dizer que é outra porrada, outra denuncia, outro filme que tem a coragem de dizer alguma coisa num momento em que tudo no cinema se torna cada vez mais imbecil e corriqueiro. O Jardineiro Fiel é uma filme de convicções, de palavras fortes, de fatos cruéis e verdadeiros. Mas também infelizmente, é daqueles filmes que você não pode comentar sem entrar em alguns detalhes que podem revelar momentos da trama e estragar surpresas. Nesse caso, pule a crÃtica e deixe para lê-la ao final, já com a certeza de que Meirelles, para nosso orgulho (digo dos brasileiros) e alegria acertou na escolha do projeto. Foi para a Inglaterra, e de lá rodar na Ãfrica e conseguiu um resultado espantoso (que teve nos EUA excelentes crÃticas e uma bilheteria bem respeitável até, para sua temática por volta de US$ 30 milhões). E não me surpreenderia, se por acaso levasse algumas indicações ao próximo Oscar.
Ralph Fiennes, que é um ator frio, distanciado, bem britânico (que funciona quando faz amantes passivos como em O Paciente Inglês e no ainda mais cruel nazista de A Lista de Schindler que o revelou), é a perfeita escolha para interpretar um diplomata de carreira, totalmente burocrático Justin Quayle que se encanta com uma jovem rica e ativista (Rachel Weiz, de A Múmia). Mal o filme começa ela já é assassinada, durante uma viagem perto de um lago no interior da Ãfrica (o filme foi feito basicamente no Quênia, em Nairobi, que logicamente tem muito a cara do Brasil). Há má vontade das autoridades em investigar o caso e impor uma resolução apressada (assalto de bandidos).
Dentro de uma estrutura clássica de flash-backs (como eles se conheceram, as possÃveis infidelidades e suspeitas, os desencontros, a gravidez dela) e de investigações (que vão ficando cada vez mais complicadas e perigosas), não chega a haver surpresas, ou grandes revelações que já não tenham sido acenadas desde o começo. (O tÃtulo é que como bom inglês, o herói se preocupa mais com o seu jardim, com o destino de suas plantinhas do que com a vida de seres humanos). Basicamente é um caso de corrupção, de pessoas em altos cargos e posições, onde os vilões são os grandes laboratórios farmacêuticos prevendo prováveis futuros surtos ou epidemias de certas doenças (por exemplo, a tuberculose) resolvem utilizar os pobres da Ãfrica para fazer experiências, usá-los como cobaias humanas. O que é totalmente verossÃmil e chocante. Tem algo a ver com Hotel Rwanda, ao deixar claro que o mundo não se incomoda que estejam ocorrendo holocaustos naquele continente, porque eles pouco representam economicamente. O dinheiro é que manda e africano, ainda mais pobre, pode ser sacrificado, ainda mais num mundo super populoso. E pior que isso, são negros.
ConstruÃdo como um thriller o filme não teria funcionado caso não fosse a firmeza da narrativa, que alterna momento mais tradicionais com outros com aquela câmera solta e livre à moda do diretor (que levou junto o mesmo ótimo fotografo de Cidade de Deus ainda que o filme tenha sido montado na Inglaterra por Claire Simpson, a mesma de Platoon).
Não sei muito mais o que dizer do filme, ele me impressionou muito. Acho que Meirelles escapou das ciladas que aguardam qualquer estrangeiro trabalhando fora de sua casa e ambiente. Fez um filme de denuncia, com cara de história de amor. Tomara que consiga atingir um público o mais amplo possÃvel.
É um belo trabalho. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 16 de outubro de 2005)