Crítica sobre o filme "Noites de Circo":

Eron Duarte Fagundes
Noites de Circo Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 18/05/2006
Noites de circo (Gyklarnas afton; 1953) talvez seja o primeiro grande filme rodado pelo cineasta sueco Ingmar Bergman, é ao menos o trabalho que o projetou para fora da Suécia; das películas anteriores feitas pelo realizador este analista só conhece Música na noite (1947), cuja principal curiosidade era o enquadramento de uma mulher nua onde o espectador podia ver a vagina, algo muito arrojado para o cinema da época, a década de 40 do século XX. Bergman é um diretor de cinema permanente e seu Noites de circo é uma permanência viva.

Vou começar este estudo analisando o envelhecimento de duas considerações críticas sobre o filme. A eminente pensadora cinematográfica norte-americana Pauline Kael afirma que Noites de circo é um dos mais sombrios filmes de Bergman; apesar de sua vinculação ao expressionismo e uma certa crueldade de filmar, Noites de circo (fotografado magnificamente por Sven Nykvist) não é tão sombrio quanto os filmes seguintes do diretor, e a observação de Kael só é defensável se foi escrita em 1953, ano do lançamento do filme, quando nem O sétimo selo (1956), nem Através de um espelho (1961), nem Gritos e sussurros (1973) eram conhecidos; diante destes outros trabalhos, a cômica diversão circense que se espalha pelas imagens rigorosas e precisas de Noites de circo tem seu sombrio empalidecido. A outra crítica a que me refiro é assinada por um sueco cujo nome nem vale a pena citar; foi escrita em 1953 mesmo e orientou toda a repulsa moralista sueca àquela fase da carreira de Bergman; o crítico aconselhava o cineasta a evitar defecar em público quando tem muita porcaria para evacuar: pelo visto, esta história de adultério e ciúme, que hoje passa por pudica, arrepiou o espírito dos moralistas de seu tempo.

Assim, se evidencia como certas visões críticas envelhecem a olhos vistos. A obra de arte autenticamente grande sobrevive aos impropérios maldosos: é a implacável ação do tempo.

Noites de circo é um dos menos metafísicos filmes de Bergman. Ele abstrai aquelas inquietações transcendentais de O sétimo selo e Luz de inverno (1962), para se fixar no acompanhamento das relações afetivas das personagens, algo que Bergman passou a depurar e a esmiuçar a partir de Persona (1966). O tema de Bergman em Noites de circo é o ciúme e a infidelidade; um diretor de circo ambulante, Albert, vive amasiado com sua atriz Anne, mas, ao chegar à localidade onde mora sua ex-mulher Agda e o filho, vai visitá-los, despertando ciúme em Anne, que, vingativa, decide ceder às tentações de um galanteador do teatro local; o jogo de amor e ciúme tensionado pela narrativa vai explodir no espetáculo de circo à noite, deixando suas marcas nas personagens envolvidas.

Noites de circo demonstra a afeição de Bergman pelos artistas populares ambulantes, geralmente tão menosprezados. E não é caso único no cinema de Bergman: em O sétimo selo e em O rosto (1958) estes seres desgarrados voltam a preencher o roteiro de um filme de Bergman. O cineasta sueco, um grande artista do espírito, dá-lhes estatura estética, sem lhes retirar a veracidade e a espontaneidade.

Em Noites de circo vemos uma jovem Harriet Andersson, atriz bergmaniana por excelência. Vinte anos depois, ela interpretaria a irmã moribunda de Gritos e sussurros. Harriet viveu criadas diferentes em filmes extremos e semelhantes de Bergman, Sorrisos de uma noite de amor (1955) e Fanny e Alexandre (1982). Gunnar Bjornstrand, outro bergmaniano típico (foi o filho do médico Isak Borg em Morangos silvestres, e o pai da louquinha de Através de um espelho), aparece na pele de um empostado diretor de teatro.

Noites de circo é um filme que se fecha em seu círculo. Sua primeira imagem é a chegada da comitiva do circo à cidadezinha. No fim vemo-la retirando-se do lugarejo. Entre um quadro e outro, ao longo de noventa minutos de filme, Bergman é mestre em deixar-nos as marcas emocionais de sua história. (Eron Fagundes)