Crítica sobre o filme "Terra em Transe":

Eron Duarte Fagundes
Terra em Transe Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 03/05/2006

A reposição em cartaz de Terra em transe (1967), um dos filmes básicos rodados no ferver do Cinema Novo pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha, vai permitir ao espectador de ontem e de hoje constatar a eterna violência estética desta realização que, utilizando elementos e observações de sua época (a década de 60 do século XX), compôs um retrato do próprio futuro do Brasil, que são os dias de agora (os primeiros passos do novo milênio). Há uma cena em que Sara, a mulher que carrega a consciência narrativa, diz a Paulo Martins, jornalista e poeta que concentra as contradições de nosso intelectual, que “a política e a poesia são demais para um só homemâ€. Glauber é Paulo Martins ao transformar Terra em transe em poesia e política; a loucura e a desordem do filme vêm desta fusão terrível, frases marxistas e grandiloqüência existencial se misturam em diálogos que são autênticos recitativos barrocos (bem ao jeito baiano, revelador das origens de Glauber); as imagens, atormentadas, igualmente misturam um delírio extraído de Karl Marx com o samba orgíaco nacional.

É verdade que Terra em transe, com o fluir das décadas, viu sua obscura linguagem adquirir uma certa rigidez clássica que clareou certos episódios aos olhos do observador. Mas não perdeu sua força interna revolucionária: isto vem de que a luz e o plano cinematográfico de Glauber eram propositadamente sujos, terceiromundistas, marginais. Ele é o oposto do paulista Walter Hugo Khouri, que era um discípulo do italiano Michelangelo Antonioni: um filme de Glauber é gritado, não-somente nas interpretações com vozes e gestos mas ainda na imagem, que despreza o rigor formal e busca a flutuação estilística. Nossa reação eterna diante do que é mostrado em Terra em transe é de desamparo: não temos por onde agarrar-nos. Hoje talvez entendamos melhor o que Glauber quis dizer com sua inventada El Dorado e suas personagens delirantes. Mas isto não ajuda muito: a insegurança trazida pelo contato com os sons multifacetados da narrativa segue existindo; e perturba, joga-nos no abismo.

O problema não é ordenar em nosso cérebro as questões deste fictício país que nos anos 60 foi tido por uma metáfora do Brasil: El Dorado vive perturbações políticas em que um intelectual perdido hesita entre o charme de Porfírio Diaz e a demagogia politiqueira de Felipe Vieira enquanto um empresário nacional, Julio Fuentes, articula negociatas com políticos e empresas estrangeiras. Em Terra em transe tudo isto é um caos: não há como ordenar, a câmara de Glauber espia mais de uma coisa ao mesmo tempo, há discursos que se superpõem e o dizer de Porfírio (que no poder vira ditador), ao ser coroado no fim do filme, “aprenderão, aprenderão. Dominarei esta terra, botarei estas histéricas tradições em ordemâ€, é utópico, nem um artista como Glauber nem os ditadores nacionais lograram dar coerência e forma ao histerismo nacional. Desconsolado, Glauber preferiu, em Terra em transe, o esforço de deixar na tela a própria histeria.

Sabe-se que Terra em transe continua a ser um filme do futuro. Um futuro que agora chegou. Numa das muitas desarvoradas e multiformes cenas que Glauber foi filmando como se estivesse tocado de um vento inconstante, um indivíduo do povo, chamado Jerônimo, começa a articular suas reivindicações referindo seu desempenho como sindicalista para falar em nome povo, então Paulo, o intelectual, sai do fundo do plano para junto de Jerônimo tapando-lhe a boca com a mão, interrompendo suas frases. Paulo dirige-se para a câmara (que é subjetivamente o espectador) e questiona: “Você vê o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Vocês já pensaram Jerônimo no poder?†Quase quarenta anos depois, o povo brasileiro tem a oportunidade de ver Jerônimo no poder. Profético Glauber! (Eron Fagundes)