A memória do cinemaníaco pode apontar para dois filmes que se aproximaram dos assuntos que Herzog explora com esplendor em Kaspar Hauser. O francês François Truffaut narrou o aprendizado selvagem dum menino diferente em O garoto selvagem (1970), assim como o norte-americano David Lynch exibiu seu monstro de feira em O homem elefante (1980). Mas a loucura fílmica de Herzog vai mais longe: nada da ternura de Truffaut, nem do senso crítico de Lynch; seria preciso recorrer ao irrespirável Monstros (1932), de Tod Browning, para entender como Herzog filma por dentro a idiotia de sua personagem, é como se a câmara estivesse dentro dum recanto escuro da cabeça de Kaspar. O filme se torna, pois, uma ácida reflexão em torno das destruições que a sociedade de hoje impõe aos indivíduos. Kaspar é um pouco de todos nós, idiotas na sarabanda social. A câmara de Herzog rasteja em nossa cabeça, na cabeça de Kaspar. Creio que hoje em dia só há um cineasta que logra fazer algo semelhante: o dinamarquês Lars Von Trier, em obras como Os idiotas (1998) e Dançando no escuro (2000).
Herzog e sua personagem desafiam as regras da lógica e do cinema. Quando um mestre dedutivo quer estabelecer suas lições rígidas para o cérebro solto de Kaspar, a criatura sai-se com um desvio provocativo, questionando um ovo de Colombo: pode um homem ser uma rã? A lógica é, então, desmontada pelo idiota; não faz mais sentido o pensar clássico para um primitivo que organiza um outro mundo. Cabe ao espectador decidir se quer passar por um rã, devorando os filmes costumeiros, ou ser um homem-cinema aberto para a criatividade dum cinema como o de Herzog.
O áspero humor alemão do cineasta surge lá pelo fim, quando um grupo de cientistas, após a morte de Kaspar, decide estudar as possíveis deformidades de seu cérebro para explicar seu esdrúxulo comportamento. Questão de lógica.
Ocorre que o cinema de Herzog é muito mais poético que lógico. Certas visões de Kaspar, transformadas em imagens-névoa (a procissão de gente subindo a montanha, a caravana inquietante que vaga pelo deserto), o atestam indelevelmente. (Eron Fagundes)