O lançamento em dvd, pela Versátil, de Através de um espelho (Saasom I en Spegel; 1961) renova a constatação da profundidade hipnótica das imagens criadas por Bergman: somos contritos espectadores das perturbações espirituais elaboradas por uma narrativa tão tensa quanto densa. Sem embargo de ter ganho o Oscar de filme estrangeiro (o Oscar, sabe-se, é uma premiação comercial; o outro Oscar ganho por Bergman foi com Fanny e Alexandre, 1982, seguramente seu trabalho mais digerível pelo público, com formas cinematográficas menos duras e sombrias que o habitual), Através de um espelho permaneceu para todo o sempre inédito nos cinemas brasileiros: uns culpavam o excessivo rigor formal do cineasta, impedindo uma aproximação com as platéias latinas; outros viam a ação da censura, pois o filme aludia veladamente à questão do incesto entre irmãos, especialmente na cena torturante em que os manos se encontram, num dia de muita chuva, na caverna para a qual ela, em sua loucura, tinha fugido.
Na verdade, Através de um espelho é a radiografia, cinematograficamente impiedosa, da demência duma mulher. Como dizem as anotações do diário do pai de Karin, a louca, aquilo a que estamos assistindo são detalhes de uma desintegração: a alma da protagonista queima e se desintegra. Bergman ainda vivia intensamente os tempos de sua inquietação com a divindade, a presença-ausência de Deus entre nós; se O sétimo selo (1956) e A fonte da donzela (1959) questionavam abertamente a existência de Deus, pode-se dizer que, com a trilogia do silêncio (formada também por Luz de inverno, 1962, e pelo maravilhoso O silêncio, 1962), Bergman se encaminhava para uma discussão mais humana que metafísica da questão religiosa, algo que se materializaria completamente uma década depois em Gritos e sussurros (1973), seu filme plástica e tematicamente mais avançado.
O cenário isolado, longe da civilização de Através de um espelho favorece a meditação transcendental. A ambientação é a natureza da ilha de Faro, onde Bergman mora há mais de quarenta anos e onde ele rodou o extraordinário documentário Minha ilha (1979). A característica concentradora da ilha, em Através de um espelho, tem a mesma função formal e temática da casa sombria e vermelha de Gritos e sussurros: oprime e força a reflexão. Neste cenário natural Bergman elege uma personagem-centro, a mulher que enlouquece, e três personagens-satélite: o marido, o pai e o irmão, todos inquietos com a doença da mulher, da filha e da irmã; bem antes da fase psicanalítica de Cenas de um casamento (1974), Face a face (1976), Sonata de outono (1978) e Da vida de marionetes (1979), Bergman elaborava um complexo jogo psicológico que nada devia aos melhores momentos de artes refinadas como a literatura.
Para estruturar com coerência, rigor e profundidade dramática os conflitos nebulosos de suas criaturas, especialmente os da protagonista (que funciona como um holofote para os demais), Bergman tem o mesmo procedimento de sempre: é uma equipe cinematográfica habitual que identifica uma figura de cinema inteiriça a que chamamos Bergman, ou seja, a instância narradora autenticamente bergmaniana. Os atores são circulares na filmografia de Bergman: Harriet Andersson, que vive a doida em Através de um espelho, viria a ser, doze anos depois, em Gritos e sussurros, a irmã que estaria morrendo; Gunnar Bjornstrand, o pai da doida, interpretara o frio filho do médico de Morangos silvestres (1957); Max Von Sydow, que faz o marido de Karin, é um rosto característico do universo de Bergman e já fora antes o cavaleiro medieval em O sétimo selo. Circulam também pela película de Bergman outros colaboradores: o fotógrafo Sven Nykvist constrói um preto-e-branco que é a própria iluminação da alma; e lá vem J.S. Bach, o músico dos músicos, para abraçar-se com o cinema de Bergman e revelar a porção espiritual que estava faltando.
Bergman se está aproximando dos noventa anos, há mais de duas décadas deixou de rodar para cinema, mas há um filme seu feito para a televisão, O mundo de luz e sombra (1997), que se equipara a seus mais geniais trabalhos, entre os quais está este Através de um espelho, que contém um final revelador e agudo das relações entre um pai e seu filho e toda a questão da incomunicabilidade e da incompreensão entre as gerações; a frase conclusiva dita pelo filho depois que seu pai lhe dá as costas e retira-se e a perplexidade do rosto do garoto em primeiro plano compõem um momento antológico de cinema. (Eron Fagundes)