Crítica sobre o filme "Ãgua Negra":

Rubens Ewald Filho
Ãgua Negra Por Rubens Ewald Filho
| Data: 18/01/2006
O mundo está todo de cabeça virada. Fico espantado em ver a imprensa, aqui e lá fora cobrar deste filme sustos e cenas de horror mais explícitas. Ou seja, não aceitam este filme de suspense psicológico, desejando que ele fosse o que não é nem nunca pretendeu ser, um terror banal. Igual a dezenas, centenas de outros. É muito fácil criar sustos fáceis, reviravoltas inesperadas. Difícil é realizar um thriller deliberadamente à maneira de Polanski (em O Inquilino e Repulsa ao Sexo), baseado todo no clima, no sugerido, no sub-entendido, no detalhe, na sutileza. O fato do filme ter sido uma decepção de bilheteria tem mais a ver com a burra expectativa do público que deseja reações imediatas (e desde quando se mede a qualidade de um filme por sua bilheteria? Desde nunca, isso é outra estupidez dos tempos atuais).

Isso não impede que eu tenha desde o começo achado que o brasileiro Walter Salles (Central do Brasil) fez uma escolha errada, quando aceitou realizar como seu primeiro filme norte-americano, a refilmagem de uma fita de terror japonesa de Hideo Nakata (passou aqui apenas na HBO). Mas parece ter sido por causa de um antigo contrato (não se sabe detalhes, porque Walter não veio ao Brasil e ficou calado. Assim como não se tem certeza de que ele teria brigado com a produção, que teria imposto modificações na edição final. Consegui achar apenas um plano no fim que me pareceu explicativo demais, quando duas pessoas caminham no corredor – não quero revelar muito). Enfim, ele devia ter procurado um projeto mais pessoal e ambicioso (como agora quando deve fazer On the Road / Pé na Estrada, de Jack Kerouac, para Francis Ford Coppola).

Mas aceito a oferta, o fato é que Waltinho fez o melhor possível. Chamou dois brasileiros, para a fotografia Afonso Beatto, para a montagem Daniel Rezende (Cidade de Deus) e ambos fizeram um trabalho excepcional. Aliás, tudo no filme conspira para o clima que Waltinho pretende imprimir. O uso do colorido desmaiado, das cores não intensas, a chuva constante, a escolha da pouca vista ilha Roosevelt do outro lado de Manhattan, mesmo o uso do bondinho para chegar lá. Sem esquecer os prédios todos iguais e decadentes. Criando um clima opressivo e inquietante, que vai num crescendo e jamais cai no banal.

Raramente se viu um filme americano recente e de orçamento médio, tão bem construído. Não tenho porque defender Waltinho, mas é preciso reconhecer o controle que ele tem na direção, na condução do elenco (aliás excepcional, todos excelentes e muito bem escolhidos). Desde a primeira imagem, a gente sente que ele está nos envolvendo na história daquela mulher perturbada, Dahlia que está no processo de um complicado divórcio (o marido a considera incapaz de cuidar da filha do casal, porque sofre de enxaquecas e tem traumas com o pai que a abandonou e a mãe alcoólatra que a rejeitou). Isso é muito ajudado pela esplêndida interpretação de Jennifer (Oscar por Uma Mente Brilhante). E de certa maneira tem razão, porque ela apressadamente aluga um apartamento que tem infiltração do andar de cima (os locatários parecem ter sumido e deixaram as torneiras abertas, talvez culpa de vândalos). Está evidente que não é uma mera história de horror, mas o retrato de uma mente psicótica, que aos poucos vai se deteriorando, enlouquecendo (e de certa maneira, passou para a filha também essa herança). Ou seja, tudo o que se mostra está sempre filtrado por sua sensibilidade (querem uma dica para entender melhor o filme: a atriz infantil que faz a menina do andar de cima é a mesma que faz Dahlia quando criança nas cenas iniciais).

Ou seja, não é a mera história do fantasma de uma criança que vem assombrar a filha de Dahlia, Ceci (a talentosa Ariel Gade), o que de qualquer forma é resolvido de forma satisfatória. Mas um retrato psicológico, muito rico, aberto a interpretações de uma mulher à beira da loucura. O que obviamente não comportaria concessões, que ele não faz. Ao contrário, em torno dela traz bons coadjuvantes que imprimem sua marca (Reilly como o agente imobiliário vigarista, o inglês Tim Roth notável como um advogado bem intencionado – a cena em que ele fala da família e depois volta para a sala de cinema sozinho, diz tudo, sem necessidade de explicações). E até a sutileza de ter uma amiga confidente que não aparece, só conversa com ela por telefone.

Nem é preciso dizer que admirei muito o filme. Embarquei totalmente na realização primorosa de Waltinho e só lamento a incompreensão generalizada. O tempo vai se encarregar de reparar a injustiça. (Por Rubens Ewald Filho na Seção Clássicos)