A Malicia Novecentista de Machado de Assis
Missa do Galo trata do adulterio feminino. Sem po-lo diretamente em cena
Machado de Assis observou a sociedade escravocrata de seu tempo com malícia. Espionava: desvendava. O conto Missa do galo, incluído no livro Páginas reunidas (1899), é um exemplar perfeito deste tom malicioso de seu narrar. Tom, ou malícia, que nasce das próprias curvas da linguagem de que o autor se vale. Em Missa do galo ele capta a sombra do adultério feminino: como numa história quase contemporânea desta, o romance Dom Casmurro (1900). Conceição, de Missa do galo, é um espírito próximo de Capitu, a esposa do “casmurro”. No conto, como aconteceria no romance, o viés velado do que se conta nasce muito do recurso da narrativa em primeira pessoa: quem narra é o homem, no conto um adolescente (embora se imagine que ele narre as coisas na maturidade, mas se deixa possuir por sua adolescência ao relembrar) seduzido subliminarmente pela figura duma mulher madura, a balzaquiana de trinta anos.
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.”
O adolescente não entende: é um analfabeto sentimental e sexual. Pouco a pouco a inocência do parágrafo inicial se vai desfazendo: sem descobrir inteiramente o véu, como requer o estilo de escrever de Machado, cheio de não-ditos e insinuações. A malícia que cutuca a inocência é dada pelo narrador atrás deste narrador que aparece, o sujeito que espia, o indivíduo que desvenda: o autor que se vale do homem Machado de Assis para dizer as coisas da sociedade carioca, brasileira, universal de seu tempo, os modelos conjugais do século XIX. “A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas.” O escrivão era Menezes, casado com Conceição. Costumava ele “ir ao teatro”. Anota a lembrança adolescente costurada por Machado: “Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer a Menezes que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Menezes trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.” Em poucos lances, a ingenuidade do agregado adolescente numa família e as convenções do adultério masculino.
Missa do galo trata do adultério feminino. Sem pô-lo diretamente em cena. “Nunca pude entender a conversação”. Então, “naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro”, o rapaz deixou-se estar por ali à espera de ir à missa do galo que combinara com um amigo, senão quando “logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.” E a conversação, maliciosa e secreta, entre Conceição e o narrador toma rumo. O narrador por trás do narrador espalha signos eróticos do século XIX. “Pouco a pouco tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas caem naturalmente e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor.” A aproximação de possível tensão sexual entre Conceição e o jovem está cheia de contenção: Eros ali vem do que se esconde e provoca o desejo de espionar, do narrador atrás, do leitor. Quando a voz ameaça elevar-se, Conceição, a adúltera típica novecentista, se queixa. “—Mais baixo! Mamãe pode acordar.” Alguma coisa se passava, sem se saber ao certo o quê: em tons secretos. Houve adultério? Não houve? Que aconteceu de fato? Há coisas assim na memória. Em meu livro Uma vida nos cinemas (1999), tratando dum caso sentimental e sexual que me marcou, escrevi: “Nunca entendi direito aquele amor tempestuoso e terminal que mantivemos.” Ao escrever isto, havia a sombra da frase inicial de Missa do galo.
No episódio de Missa do galo Conceição tentara o adultério com o rapaz? Insinuara-se para esperar o bote? Não sabemos. Supomos. Mas o narrador por trás do narrador adolescente traz nas orações finais uma pista sobre Conceição. “Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.” Teria Conceição tomado, o marido ainda vivo, o escrevente como amante como antes chegara a pensar em ter um caso de Natal com o adolescente? Seria a natureza de Conceição? É a malícia de observador de Machado de Assis quem abre e fecha este conto de adultério e erotismo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br