O Amante da Aeromoca

Um so pecado (La peau douce; 1964) eh um dos filmes menos referidos do realizador frances Francois Truffaut

26/05/2020 04:05 Por Eron Duarte Fagundes
O Amante da Aeromoca

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Um só pecado (La peau douce; 1964) é um dos filmes menos referidos do realizador francês François Truffaut e pretensamente rodado como um tapa-buraco naquilo que mais assoberbava o artista na época, lograr filmar Farenheit 451 (filme que sairia em 1966) e compor seu livro de entrevistas com o cineasta inglês Alfred Hitchcock, um dos raros cineastas da antiga defendidos por Truffaut e seus companheiros de crítica nos “Cahiers du cinéma”. “Será rapidamente escrito, filmado, lançado e, espero, amortizado”, dizia Truffaut então. O resultado é uma obra-prima em que a perícia sentimental, narrativa, estilística de Truffaut impõe a precisão de um filme de câmara extremamente contido, onde seu aprendizado hitchcockiano transborda de maneira muito pessoal, seus detalhes de cenários decupados visando a apontar ao espectador as características das personagens (no avião vemos pelo vão inferior duma porta de cabine a aeromoça, ainda antes do enlace dramático da relação dela no filme, trocar os sapatos; a cena lúbrica do homem que começa a acariciar a perna da amante, retirando-lhe compassadamente a meia que ele próprio lhe deu de presente).

Compreende-se a rejeição do público e de parte da crítica porque Truffaut fez um filme menos efusivo que sua obra mais prestigiada (Os incompreendidos, 1959; Uma mulher para dois, 1961; para aludir a trabalhos mais contemporâneos de Um só pecado). Um só pecado é mais fechado, pode-se dizer até mais secreto que o habitual de Truffaut. Talvez na filmografia do diretor só O quarto verde (1978), extraído da ficção do norte-americano Henry James, o supere nesta melancolia em que as paredes se fecham sobre o universo de filmagem. Mas diferentemente de O quarto verde, Um só pecado abre ainda uma certa nesga para o sentimentalismo de Truffaut, embora tudo muito controlado, mesmo no gesto final trágico da mulher que vai ao encontro de seu marido adúltero num restaurante francês. Mesmo assim, a carga dramática da narrativa é medida, puxada para um tom menos, bem diverso do que ocorre em A história de Adèle H. (1975). Em Um só pecado Truffaut se aproxima um pouco do cinema literário de seu companheiro Éric Rohmer (assim como em O quarto verde talvez ele esteja um pouco à beira do sueco Ingmar Bergman); se fosse um filme de Rohmer talvez o só pecado (ou pele doce) se pudesse chamar simplesmente “o amante da aeromoça”, indicando um documentário metafísico como em Rohmer, e não “a pele doce” (original francês) aonde a imaginação romântica de Truffaut sempre vai atuar mesmo num filme-cérebro como este.

Oscilando mais do que nunca entre dois opostos de seu temperamento (o sentimental e o cerebral), Truffaut corporifica uma de suas principais paixões estéticas na figura de seu protagonista, o escritor Pierre Lachenay que é especialista em Balzac (Honoré de Balzac, romancista francês, é homenageado em vários filmes de Truffaut): em Os incompreendidos os garotos acendem vela à fotografia de Balzac, em Beijos proibidos (1968) o soldado vivido por Jean-Pierre Léaud está lendo O lírio do vale (1835) cuja capa aparece em primeiro plano no início do filme. Em Um só pecado Lachenay publica um livro chamado “Balzac e o dinheiro”; alguém lhe retruca quando publicará algo como “Balzac e o amor”; como Truffaut, esta referência ambígua significa que Balzac igualmente oscilou entre o idealismo sentimental e o duro realismo da sociedade em que vivia. As questões formais e temáticas de Um só pecado passam por esta anfibologia de um cineasta que se enxerga num escritor e de um escritor que antecipa um cineasta.

Diz-se que Truffaut é um pouco produto da equação Hitchcock+Balzac. Claude Chabrol, outro companheiro de Truffaut, é também um dos resultados da incógnita desta equação. O resultado num e noutro é muito diferente porque vai depender do processo de assimilação destes dois meios estéticos (Hitchcock e Balzac). Mas as referências cinematográficas e literárias de Truffaut não param nestes dois mestres. Uma conferência do protagonista aonde vai exclusivamente para ficar longe da família com sua amante aeromoça, trata do escritor francês André Gide (1869-1951) visto na velhice por um documentário de Marc Allegret (1900-1973) rodado em 1950; vemos imagens de Gide falando, gaguejando suas sobras intelectuais. No plano estilístico, se a decupagem aqui e ali detalhista e sinuosa leva a Hitchcock, uma tensão espiritual do plano e da montagem agrega o mestre francês Robert Bresson, podemos ver uma fusão de Hitch com Bresson nas imagens criadas por Truffaut.

Como todos os filmes extremamente precisos e uniformes da história do cinema, Um só pecado conta com um trio central de intérpretes adequadíssimo e afinadíssimo na execução de cada gesto. Françoise Dorléac, irmã de Catherine Deneuve, em muitas coisas lembra sua irmã hoje mais famosa, pois Dorléac morreu cedo, aos 25 anos, em 1967, em acidente automobilístico: sua fria movimentação no quadro, as modulações refreadas de sua voz, um inusitado distanciamento dramático, nossas lembranças de Catherine sobrevivem na eternização em celulóide de Françoise. Jean Desailly, que durante as filmagens esteve às turras com Truffaut e depois deste filme caiu  em desgraça nunca mais sendo convidado para nada no cinema (caiu em desgraça como, de certa maneira, o próprio Um só pecado, que merece ser resgatado para o panteão truffautiano), está soberbo como o intelectual que se apaixona por uma garota que o admira sem saber bem quem ele é e de quem ele tem muitos pudores para a introduzir em seu universo social (esta relação entre pessoas intelectualmente diversas dá-se muito no cinema e na literatura: o escritor norte-americano Philip Roth edificou seu romance A marca humana, 2000, a partir de uma enviesada relação entre um professor universitário em fim de carreira e uma trintona faxineira da universidade; o cineasta Robert Benton filmou o romance em 2003, vale lembrar que Benton é um veterano diretor americano que nos anos 60 esteve envolvido com o roteiro de Bonnie e Clyde que seria filmado por Truffaut e acabou nas mãos do norte-americano Arthur Penn, Benton é um representante do sentimentalismo no cinema de Hollywood e pasteuriza as incursões sentimentais que Truffaut trilha com seu rigor europeu; Truffaut em Um só pecado  executa com grande brilho estas indagações morais sobre os relacionamentos humanos). Enfeixando o trio de intérpretes, Nelly Benedetti vive com extrema dignidade e correção o papel da mulher traída, cujo olhar final misterioso e transverso para a câmara é um dos grandes finais de filme da história do cinema.

Curiosidades do filme. Nas cenas de Lisboa, onde o amor adúltero de Pierre e Nicole começa, ouvimos algumas palavras em português (sotaque de além-mar, é claro), e um avião da Panair do Brasil é percebido na imagem. A cena do gatinho que se aproxima da bandeja de café que Nicole/Dorléac deixa na porta do apartamento do hotel onde estão os amantes, é muito rápida, quase uma cena de realismo pitoresco do filme, se a memória não acusasse que em A noite americana (1973) Truffaut mostrou as dificuldades que teve para induzir o bichano a chegar-se da bandeja de café e beber o leite sobrante.

Um só pecado. Um só filme. Um filme único. A pele doce e serena de uma realização de François Truffaut.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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