Cruel Mas Compassivo

Bergman é suficientemente cruel em Morangos silvestres para impor ao observador a agudez de sua reflexão sobre o homem

20/04/2019 01:18 Por Eron Duarte Fagundes
Cruel Mas Compassivo

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A primeira cena narrativa de Morangos silvestres (Smultronstallet; 1957) dá-se antes dos créditos iniciais, é um breve prólogo em que, à maneira de certos romances da literatura europeia do século XIX, o realizador sueco Ingmar Bergman apresenta as linhas gerais de sua personagem e de suas intenções fílmicas; e o faz de maneira precisa e sintética, sem todavia abrir mão de sua profundidade característica: o cineasta é tão bom no manejo das palavras quanto na junção das imagens apresentadas pela montagem neste introito. O primeiro plano é um plano fixo em que o protagonista aparece em plano médio, de costas, e está a escrever; o texto-off, com a voz do ator Victor Sjöstrom, revela o conteúdo do escrito, sua reflexão sobre seus problemas de relacionamento humano, resmunga que as pessoas ao se relacionarem vivem o tempo todo a discutir e a criticar umas às outras. Mais adiante, seguindo o texto o mesmo rumo temático, topamos com um corte para um primeiro plano de Sjöstrom, já lhe vemos o rosto, ainda que de lado; quando as frases se voltam para questões familiares, surgem pequenos planos das fotografias de família que circundam a escrivaninha da criatura, inclusive uma de sua falecida mulher. Um plano da idosa empregada à porta chamando-o para a refeição, outro plano da personagem saindo da peça, o texto vai continuar correndo sobre a imagem mesmo depois que a peça surge vazia, isto é, sem vivalma: este texto vai revelar-nos que quem se está dirigindo ao espectador é um médico aposentado de 78 anos e que no dia seguinte vai à cidade universitária de Lund receber um título honorífico.

Ao longo da viagem de quatorze horas de carro que o professor Isak Borg empreende até Lund, em companhia de sua nora Marianne (a atriz Ingrid Thulin a compõe com justeza característica: fria e amável, dura e apaixonada num mesmo gesto), acontece o que ele vai chamar no fim do filme “os eventos do dia”. Estes eventos, em que se misturam fatos contemporâneos, sonhos (como o escritor russo Fiódor Dostoievski, Bergman parecia na época fascinado pela carga de revelação dos sonhos) e evocações da infância e da adolescência, vão determinar que o verdadeiro sentido de Borg é mais metafórico que real, não é verdadeiramente a insígnia em Lund o que ele busca, mas a chegada a um processo de autoconsciência. Tal processo é sempre doloroso, uma autêntica cirurgia na alma: em Morangos silvestres o jogo de espelhos funciona barbaramente; Borg dá carona a três jovens, uma garota e seus dois pretendentes, e a alegria de viver desta turma de pouca idade, apesar da discussão dos rapazes sobre a questão da existência ou não de Deus, é associada às lembranças adolescentes do velho médico; um casal que vive às turras e tem de ser expulso do carro por Marianne espelha um pouco dois outros casamentos infernais, o do próprio Borg no passado e o de sua nora que está grávida e cujo filho o marido (filho de Borg e reflexo do pai) não quer em virtude do existencialismo sombrio de sua mente.

Diante de todo o desenvolvimento adquirido pelo filme, aquela rápida e esclarecedora sequência de antes da apresentação dos créditos iniciais, vai erigir-se em holofote da narrativa: ilumina seus significados, dá luz às suas obscuridades expressionistas. A pequena sequência, fechadas todas as imagens da fita, está ali como epígrafe-resumo de Morangos silvestres: apesar de todo o conhecimento e do prestígio profissional e intelectual, Isak Borg revela sua falta de cultura emocional, que é o que o faz criticar constantemente as pessoas que ama.

Bergman é suficientemente cruel em Morangos silvestres para impor ao observador a agudez de sua reflexão sobre o homem. Porém está longe dos retratos infernais de Gritos e sussurros (1972) e Sonata de outono (1978); mais antigamente (anos 50, por exemplo) ele era muito mais compassivo com os pecados de suas personagens. Mesmo a abertura para um dia de sol num balanço nas cenas finais de Gritos e sussurros não tem a alacridade redentora do primeiro plano final da face de Sjöstrom em Morangos silvestres, face abrindo-se para um conhecimento íntimo de si e dos outros que pode levá-lo a salvar-se.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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