A Poesia Apocalptica nas Mos Delirantes de Z Celso

A histria de O rei da vela um olhar assombroso sobre os desvios perversos a que sempre esteve submetida a cultura brasileira

15/03/2019 00:00 Por Eron Duarte Fagundes
A Poesia Apocalíptica nas Mãos Delirantes de Zé Celso

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A história de O rei da vela é um olhar assombroso sobre os desvios perversos a que sempre esteve submetida a cultura brasileira. A peça foi escrita por Oswald de Andrade em 1933, sob o calor da crise financeira de 1929; inspirada em grande parte na experiência de vida do autor, um intelectual paulista que acumulara dívidas nos anos da crise e já não estava conseguindo viver seu hedonismo cultural, a peça na verdade ultrapassa esta questão particular e abrange um retrato devastador da burguesia brasileira, a que o próprio autor pertencia. O texto só teve publicação em livro em 1937. Seja pelas dificuldades formais, seja pelos condicionamentos sociais e políticos, o drama um pouco burlesco, um pouco ácido, mas amiúde forte na construção duma linguagem tropical (pré-tropicalista?), nunca foi levado ao palco. Em 1967, contra todas as possibilidades (o auge da repressão política do fascismo implantado três anos antes, o conformismo habitual da cena teatral), surgiu a cabeça demencial de um homem, José Celso Martínez Corrêa, conhecido pelo codinome de Zé Celso, um paulista de Araraquara; esta cabeça tumultuante e inventiva se inseriu no Teatro Oficina, que já existia, e apostou na encenação do texto de Oswald. No texto de apresentação, na época, de O rei da vela, Zé Celso em sua primeira frase já bota pra quebrar: “Nós somos muito subdesenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de Oswald.” Renato Borghi e Itala Nandi, esta uma atriz gaúcha de Caxias do Sul que vivia em São Paulo, viveram os protagonistas daquele evento de 1967. O rei da vela de Zé Celso era tributário do tropicalismo (que tinha entre seus mentores o cantor Caetano Veloso, amigo de Zé Celso) e também do filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, que o diretor teatral vira em sessões privadas. Delirante como Glauber, que morreu logo depois dos 40 anos, Zé Celso segue até hoje agitando o subdesenvolvido mundinho cultural brasileiro. É o que se vê de sua nova encenação de O rei da vela, cuja primeira apresentação no país se deu no Teatro do Sesi, como epílogo do 25º Porto Alegre em Cena, em 2018.

O rei da vela é uma peça em três atos em que Oswald alterna climas narrativos para satirizar o universo farsesco brasileiro. Oswald parece ir além de Nelson Rodrigues ao caracterizar nossa hipocrisia moral: especialmente pelo sábio uso da linguagem.

“ A secretária: É para bater à máquina, seu Abelardo?
Abelardo I: Não. Para estenografar. Nem isso. A senhora sabe redigir. Melhor do que eu. Faça uma conta. Sente-se aí.”

Zé Celso começa com um aparente despojamento no primeiro ato; mas é um despojar-se que contém alguma estranheza. As poucas peças do escritório da usura, o retrato do presidente Getúlio Vargas na parede do fundo, as maquiagens-máscara quase invisíveis, as roupas sem chamar atenção para si. No segundo ato o delírio metafórico assoma no palco: o guarda-roupa delirante, os exageros gritados dos atores (Glauber?), o cenário refazendo-se e movendo-se num carnaval de encenações, as danças frenéticas. O terceiro ato é um pouco uma fusão dos dois primeiros atos.

Juntamente com Marcelo Drummond, Tulio Starling, Sylvia Prado e outros, o próprio Zé Celso vive uma personagem, uma velhinha cínica. O criador se insere em sua criação. Para dar ainda mais autenticidade àquilo que, numa entrevista a Juremir Machado da Silva para o Caderno de Sábado do Correio do Povo de 20.10.2018, se vê numa de suas frases: “Acontece uma primavera cultural quando o público vê o espetáculo.” Explicando: “Uma primavera do país. Oswald dedicou ‘O rei da vela’ a esse enjeitado, o teatro brasileiro. Foi assim que ele escreveu. É um enjeitado que as pessoas procuram no momento de crise e aí acontece essa primavera.”

(Para lembrar, afetivamente como espectador dos palcos gaúchos. Em 1982 a diretora Irene Brietzke, um dos melhores encenadores teatrais do sul do país, levou ao Teatro Renascença sua versão de O rei da vela. O cineasta e crítico de cinema Tuio Becker assinou a autoria do painel de fundo. Celso Loureiro Chaves fez a partitura do espetáculo. O cineasta Sérgio Silva foi o responsável pelos cenários).

No fim de sua encenação atual Zé Celso apõe um longo texto de Oswald. Uma oração parece atacar mais fortemente: “Um imenso cadáver gangrenado.” Oswald no meio do Estado Novo de Getúlio. Zé Celso no coração da repressão político-militar do fim dos anos 60. Zé Celso e nós à beira dos mais sérios paradoxos em colapso dos comportamentos da sociedade brasileira nesta segunda década do século XXI. Não seria bem assim, “um cadáver gangrenado”, neste aposto para o país inventado por Oswald, que, em alguns relances, um certo olhar pode ver o Brasil de hoje? Cuido que O rei da vela, o de outros tempos e o de agora, nos ajuda ver.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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